O Apartamento da Avó e o Peso da Herança

— Não é justo, mãe! — gritei, sentindo a voz embargar-se de raiva e impotência. — A avó sempre cuidou de todos nós, mas agora que ela precisa, vocês empurram tudo para cima de mim só porque ela me deixou o apartamento?

A minha mãe olhou-me com aquele olhar frio que só ela sabia fazer, os braços cruzados, os lábios finos apertados. — O apartamento é teu, Rui. A responsabilidade também. Não querias a parte boa sem a parte difícil, pois não?

Fiquei ali parado, no corredor estreito do velho prédio em Arroios, sentindo o cheiro a sopa de legumes que vinha da cozinha da avó. O eco das palavras da minha mãe martelava-me na cabeça. O apartamento era meu — sim, era verdade. Mas o que ninguém parecia perceber era que eu nunca o quisera por interesse. Era ali que eu tinha aprendido a andar de bicicleta no pátio das traseiras, onde a avó me ensinara a fazer arroz doce e onde me escondia dos gritos dos meus pais quando eles discutiam.

Agora, com quase 80 anos, a avó Maria ainda andava pela casa, arrastando os chinelos e murmurando canções antigas. Mas a memória dela começava a falhar. Às vezes chamava-me pelo nome do meu pai, outras vezes esquecia-se de que já tinha almoçado. E eu? Eu sentia-me esmagado pelo peso de tudo aquilo.

Naquela noite, depois da discussão, sentei-me ao lado dela no sofá gasto da sala. A televisão estava ligada num volume absurdo, mas ela nem parecia ouvir. Olhou para mim com aqueles olhos azuis já baços e sorriu.

— Rui, lembras-te quando fazíamos bolinhos de bacalhau juntos?

Assenti, engolindo em seco. — Lembro, avó. Tu ralhavas comigo porque eu punha demasiado sal.

Ela riu-se, uma risada breve e frágil. — Sempre foste teimoso.

Ficámos ali em silêncio durante um tempo que me pareceu uma eternidade. Eu queria perguntar-lhe porquê me deixara o apartamento. Queria saber se ela percebia o que isso significava para mim. Mas não consegui.

Os dias seguintes foram uma sucessão de pequenas tragédias domésticas: a avó deixou o gás ligado uma vez; noutra manhã, encontrei-a a tentar sair para ir buscar pão às seis da manhã, vestida apenas com uma camisola fina. Liguei à minha mãe, desesperado.

— Não posso fazer isto sozinho! — supliquei. — Não posso deixar o trabalho para trás… E tu e a tia Helena? Não podem ajudar?

— Rui, já falámos sobre isto — respondeu ela, impaciente. — A tua tia tem os miúdos pequenos e eu estou a trabalhar por turnos. Faz parte da vida. Tens de te organizar.

Senti-me traído. Sempre fora o neto preferido da avó Maria — ou pelo menos era isso que diziam nas festas de Natal, entre risos e olhares enviesados. Agora percebia que esse favoritismo tinha um preço alto.

Comecei a faltar ao trabalho para levar a avó ao centro de saúde, para lhe fazer as compras e garantir que tomava os medicamentos certos. O meu chefe começou a olhar-me de lado. Os meus amigos deixaram de me convidar para sair. A minha namorada, Sofia, tentou ser compreensiva ao início, mas ao fim de dois meses já não escondia o cansaço.

— Rui, não podes continuar assim — disse ela numa noite em que cheguei tarde e exausto ao nosso pequeno apartamento em Benfica. — Estás a perder-te nisto tudo. E eu também estou a perder-te.

Olhei para ela e vi nos seus olhos algo que me magoou mais do que qualquer discussão: resignação.

— Sofia… eu não posso abandoná-la agora.

Ela suspirou e abanou a cabeça. — E eu? Vais abandonar-me a mim?

Não soube responder.

O tempo foi passando e as coisas pioraram. A avó começou a ter episódios de confusão mais graves: um dia não me reconheceu; noutro, acusou-me de lhe querer roubar o dinheiro da reforma. Chorei sozinho na casa de banho do apartamento dela, sentindo-me um monstro por pensar que talvez fosse melhor se tudo acabasse depressa.

Uma tarde, enquanto lhe dava banho — tarefa que ela detestava e que fazia com que gritasse como uma criança assustada — ouvi baterem à porta com força. Era a minha mãe e a tia Helena.

— Temos de falar — disse a tia Helena sem rodeios.

Sentámo-nos todos à mesa da cozinha, como tantas vezes antes, mas agora havia uma tensão no ar quase palpável.

— Isto não pode continuar assim — começou a minha mãe. — O Rui está a sacrificar tudo pela mãe…

— Mas foi ela que lhe deixou o apartamento! — interrompeu a tia Helena, lançando-me um olhar acusador.

— E então? Achas justo? — perguntei eu, sentindo as lágrimas ameaçarem cair outra vez. — Acham mesmo que isto é uma recompensa? Acham mesmo que alguém quer ver quem ama assim?

O silêncio caiu sobre nós como uma pedra pesada.

No fim dessa noite decidiram procurar um lar para idosos para a avó Maria. Fui contra essa decisão até ao último momento. Senti-me um traidor quando assinei os papéis no lar em Odivelas, onde as paredes cheiravam a desinfetante e os corredores ecoavam gemidos e risos nervosos.

No dia em que deixei a avó lá pela primeira vez, ela agarrou-me a mão com força.

— Rui… não me deixes aqui sozinha…

O nó na garganta quase me sufocou. Beijei-lhe a testa e prometi voltar todos os dias.

Durante semanas cumpri essa promessa. Levava-lhe flores frescas do mercado da Praça da Figueira e bolinhos caseiros como ela gostava. Mas cada visita era mais difícil do que a anterior: via-a definhar aos poucos, perder-se nos corredores da própria mente.

A família afastou-se ainda mais depois disso. A minha mãe culpava-me por não ter conseguido aguentar mais tempo; a tia Helena dizia que eu devia estar agradecido pela “herança”; Sofia acabou por me deixar.

Agora estou aqui, sentado no sofá do apartamento vazio da avó Maria, rodeado pelas memórias dela: as fotografias antigas na parede, os bordados coloridos nas almofadas, o cheiro persistente do seu perfume barato.

Pergunto-me se fiz tudo o que podia. Pergunto-me se algum dia estaremos preparados para cuidar de quem sempre cuidou de nós… E vocês? Já sentiram este peso? O que fariam no meu lugar?