O Aniversário da Sogra: O Peso de Uma Festa Que Não Pedi

— Ana, já compraste as flores para a mesa? — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoa pela cozinha antes mesmo de eu conseguir tirar o avental. O cheiro do bacalhau ainda paira no ar, misturado ao nervosismo que me acompanha desde manhã.

Respiro fundo. O relógio marca 17h12. Faltam menos de duas horas para a casa encher de gente, risos forçados e olhares críticos. O aniversário dela, mais uma vez, é aqui. E, como sempre, sou eu quem faz tudo.

— Ainda não, Dona Lurdes. Estive a preparar o bolo e o arroz doce. Mas vou já buscar — respondo, tentando esconder o cansaço na voz.

Ela suspira alto, como se o mundo dependesse das flores certas na mesa. — Não te esqueças das margaridas. Gosto delas brancas, não amarelas.

O meu marido, Rui, entra na cozinha com o telemóvel na mão, distraído. — Amor, viste onde pus o carregador?

— Está na sala, Rui — respondo automaticamente, enquanto limpo as mãos no pano da loiça.

Ele nem olha para mim. — Ah, obrigado.

Sinto-me invisível. Não é só hoje. É sempre assim: Natal, Páscoa, aniversários… Tudo acontece aqui em casa porque “a Ana faz tão bem”, “a Ana tem jeito para estas coisas”. Mas ninguém pergunta se eu quero. Ninguém percebe que estou exausta.

Quando finalmente saio para comprar as flores, o céu ameaça chover. No caminho, lembro-me do primeiro aniversário que organizei para Dona Lurdes. Era recém-casada, queria impressionar. Fiz tudo com carinho: entradas, prato principal, sobremesas. Ela elogiou o salmão mas criticou o arroz: “Está um bocadinho passado, mas não faz mal.” Senti-me pequena.

Na florista, escolho as margaridas brancas. A senhora sorri e pergunta:

— Festa grande?

— Para a sogra — respondo com um sorriso amarelo.

— Coragem — diz ela, como se adivinhasse tudo.

Volto para casa e encontro Rui sentado no sofá a ver futebol com o irmão, Miguel. As crianças correm pelo corredor. A mesa ainda está por pôr. O bolo arrefece em cima do balcão.

— Rui, podes ajudar-me a pôr a mesa? — peço.

Ele olha para mim como se tivesse pedido algo impossível.

— Agora? O jogo está quase a acabar…

Miguel ri-se:

— Deixa lá, Ana. O Rui é péssimo com pratos.

Engulo em seco. Pego nos pratos sozinha e começo a arrumar tudo. Sinto as lágrimas a quererem cair mas resisto. Não vou chorar agora.

Dona Lurdes aparece de novo:

— Ana, já puseste as velas no bolo? E os guardanapos?

— Já trato disso — respondo.

Ela aproxima-se e baixa a voz:

— Sabes, querida… Eu sei que isto dá trabalho. Mas família é assim mesmo. Temos de nos sacrificar uns pelos outros.

Queria responder: “E quando é que alguém se sacrifica por mim?” Mas fico calada.

Os convidados chegam aos poucos: tias faladoras, primos barulhentos, vizinhos curiosos. Todos elogiam a decoração da sala e o cheiro da comida. Sorrio mecanicamente enquanto sirvo bebidas e tento manter as crianças longe da mesa posta.

Durante o jantar, Dona Lurdes faz um brinde:

— Quero agradecer à Ana por mais uma festa maravilhosa! Não sei o que seria desta família sem ela!

Todos batem palmas. Rui sorri orgulhoso para mim. Mas por dentro sinto-me vazia.

A certa altura ouço as tias na cozinha:

— A Ana tem mesmo jeito para isto… Mas parece cansada, não achas?

— Pois… Mas quem manda querer agradar a todos?

A frase fica a ecoar na minha cabeça: quem manda querer agradar a todos?

Depois do jantar, enquanto todos conversam na sala, fico sozinha na cozinha a lavar montanhas de loiça. As mãos já doridas da água quente e do detergente barato. Rui aparece à porta:

— Precisas de ajuda?

Olho para ele com vontade de gritar: “Sim! Preciso de ajuda há anos!”

Mas só digo:

— Não te preocupes. Vai lá para junto da tua mãe.

Ele hesita um segundo e volta para a sala.

Quando finalmente termino tudo, sento-me à mesa vazia e olho para os restos da festa: migalhas de bolo, copos sujos, guardanapos amachucados. Sinto uma raiva surda misturada com tristeza.

Dona Lurdes entra na cozinha para se despedir:

— Obrigada por tudo, Ana. És uma nora de ouro.

Sorrio sem vontade.

Quando todos se vão embora e a casa fica em silêncio, Rui senta-se ao meu lado no sofá:

— Correu tudo bem, não achas?

Olho para ele e finalmente deixo escapar:

— Rui… Achas justo ser sempre eu a fazer tudo? Alguma vez pensaste em perguntar se eu queria esta responsabilidade?

Ele parece surpreendido:

— Pensei que gostavas…

— Gostava… No início. Agora sinto-me usada. Sinto que ninguém me vê realmente.

Ele fica calado por um momento e depois diz:

— Desculpa, Ana. Nunca pensei nisso assim.

As lágrimas caem finalmente. Não sei se é alívio ou tristeza.

Naquela noite não durmo bem. Fico a pensar em todas as vezes que me anulei para agradar aos outros. Em quantas festas organizei sem nunca ser convidada para uma sequer.

No dia seguinte acordo decidida: preciso de mudar alguma coisa. Preciso de me pôr em primeiro lugar pelo menos uma vez.

Mas será que consigo? Será que alguém vai perceber se eu desaparecer das festas? Ou será que só sou vista quando estou a servir?