O Abraço Perdido: A História de Uma Avó Portuguesa
— Não, mãe, não podes continuar a aparecer sem avisar! — A voz da Inês ecoou pelo corredor, cortante, como uma faca a atravessar o silêncio da minha casa. Eu estava ali, de pé, com as mãos trémulas a segurar um saco de bolos que tinha acabado de fazer para a Leonor, a minha neta. O cheiro doce do açúcar misturava-se com o amargo da rejeição.
— Inês, só queria ver a Leonor… — tentei explicar, mas ela já me olhava com aquela expressão cansada, como se cada palavra minha fosse um peso que ela não queria carregar.
— Não percebes? Ela está bem. Não precisa de ti assim! — respondeu, desviando o olhar para o chão. Senti o peito apertar-se. Como é que chegámos aqui?
A verdade é que nunca fui uma mãe perfeita. O meu marido, António, morreu cedo demais e eu fiquei sozinha com uma filha pequena e uma vida inteira para reconstruir. Trabalhei noites inteiras na fábrica de conservas em Setúbal, perdi festas da escola, falhei aniversários. Inês cresceu a ver-me cansada, ausente, sempre a correr atrás do tempo e do dinheiro que nunca chegavam.
Quando ela engravidou da Leonor, pensei que finalmente teria uma segunda oportunidade. Mas as feridas antigas não saram só porque nasce uma criança. Pelo contrário, às vezes abrem-se ainda mais.
— Mãe, tu não percebes… — Inês suspirou, encostando-se à ombreira da porta. — Eu preciso de estabilidade para a Leonor. Não posso lidar com os teus altos e baixos.
— Eu estou melhor agora — menti. Tinha começado a ir à igreja aos domingos e até falava com a Dona Rosa sobre os meus medos. Mas as noites continuavam longas e vazias, e o eco da solidão era ensurdecedor.
Lembro-me do dia em que tudo mudou. Foi numa manhã de janeiro, fria e húmida. Tinha decidido surpreender Inês com um almoço de família. Fiz bacalhau à Brás, o prato preferido dela desde pequena. Quando cheguei ao apartamento dela, ouvi vozes vindas do interior. Hesitei antes de bater à porta.
— Quem é? — perguntou Inês, já irritada.
— Sou eu… — respondi baixinho.
O silêncio caiu pesado. Depois ouvi passos apressados e a porta abriu-se apenas uma fresta.
— Mãe, não podes aparecer assim! O Miguel está cá…
Miguel era o novo namorado dela. Nunca me apresentou oficialmente. Diz que não quer misturar as coisas, que precisa de espaço para construir a própria família.
— Só queria trazer-te almoço…
Ela olhou para o tacho nas minhas mãos e depois para mim. Vi nos olhos dela uma mistura de pena e impaciência.
— Deixa aí na entrada. Obrigada.
Fechei a porta devagarinho e desci as escadas com o coração aos saltos. Senti-me invisível.
As semanas passaram e as chamadas tornaram-se cada vez mais raras. Quando ligava, era sempre a Leonor que atendia:
— Avó Maria! — gritava ela, cheia de alegria.
Mas logo ouvia ao fundo:
— Leonor, dá cá o telefone à mãe!
E depois o silêncio.
Comecei a escrever cartas à Inês. Cartas longas, cheias de memórias: das tardes no parque, dos bolos de laranja ao domingo, das histórias inventadas antes de dormir. Nunca obtive resposta.
Um dia, decidi ir à escola da Leonor. Fiquei à porta do recreio só para a ver brincar. Ela viu-me e correu até à grade:
— Avó! — gritou, com os braços abertos.
Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, uma professora aproximou-se:
— A senhora não pode estar aqui sem autorização.
Senti-me humilhada. Fui embora com lágrimas nos olhos.
Em casa, o silêncio era ensurdecedor. O relógio marcava as horas devagarinho e eu sentia cada segundo como uma punhalada. Comecei a falar sozinha:
— Onde foi que errei? Porque é que a minha filha me vê como um perigo?
A vizinha do lado, Dona Rosa, tentava animar-me:
— Maria do Carmo, dá tempo ao tempo. As feridas saram devagarinho.
Mas eu sabia que o tempo também pode afastar ainda mais as pessoas.
No Natal passado, decidi tentar mais uma vez. Comprei um presente para a Leonor: um livro de contos portugueses ilustrados. Escrevi uma dedicatória:
“Para a minha querida neta Leonor,
Que nunca te falte imaginação nem amor.
Com carinho,
Avó Maria”
Fui até à casa da Inês e deixei o presente na caixa do correio. Esperei dias por uma mensagem de agradecimento ou pelo menos um telefonema. Nada.
Na noite de Natal sentei-me sozinha à mesa posta para três: eu, Inês e Leonor — lugares vazios cheios de saudade.
O tempo foi passando e comecei a perder as forças. As dores nas costas aumentaram, o médico disse-me que devia descansar mais. Mas como se descansa quando o coração está inquieto?
Certa tarde recebi uma carta da Segurança Social: estavam a avaliar as condições das avós para visitas supervisionadas aos netos em casos de conflito familiar. Senti-me revoltada: será que cheguei ao ponto de precisar de autorização para ver a minha própria neta?
Fui falar com o padre Manuel na igreja:
— Padre, perdi a minha família…
Ele olhou-me nos olhos:
— Maria do Carmo, às vezes é preciso perdoar-nos primeiro antes de pedir perdão aos outros.
Essas palavras ficaram comigo dias inteiros. Comecei a escrever um diário: cada página era um desabafo, uma tentativa de entender onde tudo se perdeu.
Uma noite sonhei com a Leonor: ela corria para mim num campo cheio de papoilas vermelhas e ria-se como só as crianças sabem rir. Acordei com lágrimas nos olhos e uma decisão no peito: não podia desistir.
No aniversário da Leonor fui até à escola outra vez — desta vez com autorização da diretora. Levei um bolo simples e esperei no portão.
Quando ela me viu, correu para mim:
— Avó! — abraçou-me com força.
Senti o mundo parar naquele instante. Mas logo vi Inês ao longe, furiosa:
— Mãe! O que estás aqui a fazer?
Olhei-a nos olhos:
— Só quero ver a minha neta crescer feliz.
Ela hesitou por um momento e depois levou Leonor pela mão sem dizer mais nada.
Voltei para casa mais leve mas também mais triste: aquele abraço soube-me a despedida.
Hoje escrevo estas palavras sentada na varanda onde tantas vezes contei histórias à Inês quando era pequena. O sol põe-se devagarinho sobre os telhados vermelhos de Setúbal e eu pergunto-me: será que algum dia vou recuperar o abraço perdido da minha família? Será que há perdão suficiente para sarar todas as feridas?
E vocês? Já sentiram este vazio? O que fariam no meu lugar?