Nunca Planeei Ser Madrasta, Mas Agora Invisto nos Filhos do Meu Marido Como Se Fossem Meus
— Não és a minha mãe! — gritou a Leonor, com os olhos cheios de lágrimas, enquanto atirava o prato do jantar para o chão. O barulho da loiça a partir ecoou pela cozinha, e eu senti o coração a apertar-se no peito. O João, o meu marido, olhou-me de lado, entre o cansaço e a culpa. Eu só queria desaparecer naquele momento.
Nunca planeei ser madrasta. Cresci em Lisboa, filha única de pais divorciados, e jurei a mim mesma que nunca me meteria numa família partida. Mas o amor não se planeia. Conheci o João numa noite chuvosa de novembro, num café em Campo de Ourique. Ele tinha um sorriso triste e um olhar cansado, mas havia algo nele que me puxou. Conversámos durante horas sobre livros, música portuguesa e as pequenas tragédias da vida. No final da noite, ele disse-me: “Tenho dois filhos. Eles são tudo para mim.”
Na altura, achei bonito. Pensei que era sinal de responsabilidade e maturidade. Não fazia ideia do que me esperava.
Os primeiros meses foram um namoro como qualquer outro — jantares fora, passeios à beira-rio, beijos roubados em ruas estreitas. Mas ao fim de pouco tempo, comecei a perceber que havia sempre uma barreira invisível entre nós: os filhos dele. O João falava deles com orgulho e preocupação. A Leonor tinha oito anos e o Tomás seis. A mãe deles, a Marta, era uma presença constante — telefonemas a toda a hora, mensagens sobre horários da escola, discussões sobre férias e aniversários.
A primeira vez que conheci as crianças foi num domingo à tarde. Trouxeram-me desenhos e olharam-me de lado, como se eu fosse uma intrusa no seu território. Tentei ser simpática, mas sentia-me deslocada. A Marta fez questão de aparecer para os ir buscar mais cedo do que o combinado. Olhou para mim de cima a baixo e disse: “Espero que saiba no que se está a meter.”
Não sabia.
Com o tempo, comecei a passar mais fins de semana com eles. A Leonor era desconfiada e respondona; o Tomás era mais doce, mas colava-se ao pai como uma sombra. Eu tentava agradar-lhes — fazia bolos, inventava jogos, ajudava nos trabalhos de casa. Mas bastava um pequeno erro para tudo ruir: um brinquedo trocado, um almoço diferente do habitual, uma palavra fora do sítio.
O João tentava equilibrar tudo: o trabalho no escritório de advogados, as visitas dos filhos, as exigências da ex-mulher e o nosso namoro. Muitas vezes sentia-me em segundo plano. Uma noite, depois de os miúdos irem dormir, desabafei:
— Sinto que nunca vou ser prioridade para ti.
Ele suspirou e passou as mãos pelo cabelo.
— Eles são meus filhos… Não posso falhar com eles.
— E eu? — perguntei, quase num sussurro.
Ele não respondeu.
Quando decidimos viver juntos, pensei que as coisas iam melhorar. Mudámo-nos para um T3 em Benfica, perto da escola das crianças. O João insistiu em decorar os quartos deles com tudo o que gostavam: posters do Benfica para o Tomás, unicórnios para a Leonor. Eu ajudei em tudo — pintei paredes, montei móveis, comprei roupa nova.
Mas a Marta não facilitava. Ligava todos os dias para saber se os filhos tinham tomado banho, se tinham comido sopa, se tinham feito os trabalhos de casa. Uma vez apareceu à porta sem avisar e fez uma inspeção ao frigorífico. No dia seguinte mandou-me uma mensagem: “Se não sabe cuidar deles, mais vale não se meter.”
Comecei a duvidar de mim própria. Será que estava mesmo a fazer bem? Será que alguma vez seria aceite?
Os conflitos aumentaram quando chegou o Natal. O João queria passar a véspera comigo e com as crianças; a Marta exigia tê-los em casa dela. Discutiram ao telefone durante horas. No fim, os miúdos ficaram tristes e eu senti-me culpada por estar ali a dividir uma família.
A situação financeira também começou a pesar. O João pagava pensão de alimentos elevada e ainda assim queria dar tudo aos filhos quando estavam connosco: viagens à KidZania, idas ao cinema, brinquedos caros. Eu via o saldo da conta a diminuir e preocupava-me com as contas da casa.
Uma noite sentei-me com ele na sala:
— Não podemos continuar assim… Estamos a gastar mais do que temos.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos:
— Não quero que lhes falte nada… Já lhes tirei tanto.
— Mas também tens de pensar em nós…
Discutimos até tarde. No fim fiquei sozinha na sala, a olhar para as fotografias dos miúdos na estante.
O pior veio quando perdi o emprego na agência de publicidade onde trabalhava há anos. De repente passei os dias em casa com as crianças nas férias escolares. A Leonor tornou-se ainda mais difícil — respondia torto, fazia birras por tudo e por nada.
Uma tarde ouvi-a ao telefone com a mãe:
— Não gosto dela… Ela não é como tu.
Chorei no quarto sem fazer barulho.
O Tomás começou a chamar-me “mana” em vez de “madrasta”. Achei graça ao início, mas depois percebi que era uma forma de não me reconhecer como adulta na vida dele.
O João tentava animar-me:
— Eles vão habituar-se… Dá tempo ao tempo.
Mas eu sentia-me cada vez mais sozinha naquela casa cheia de vozes que não eram minhas.
Um dia recebi uma carta da minha mãe:
“Filha,
Sei que estás a passar por momentos difíceis. Lembra-te que família não é só sangue — é quem cuida e está presente nos maus momentos.”
Chorei outra vez. Decidi tentar diferente: deixei de tentar ser mãe perfeita e comecei só a estar presente — ouvir as histórias deles sem julgar, ajudar nos trabalhos sem esperar agradecimento, preparar pequenos almoços especiais ao fim de semana só porque sim.
Aos poucos as coisas mudaram. A Leonor começou a pedir-me ajuda para escolher roupa; o Tomás pediu-me para ir vê-lo jogar futebol na escola. Um dia chegaram ambos com desenhos: “Para a Ana”. Guardei-os como tesouros.
A Marta continuou difícil — nunca deixou de me ver como ameaça. Mas aprendi a não levar tudo tão a peito.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi — noites sem dormir, dinheiro gasto em brinquedos e consultas médicas, lágrimas escondidas no quarto — mas também tudo o que ganhei: abraços inesperados, risos partilhados à mesa do pequeno-almoço, uma família feita à força do amor e da persistência.
Nunca planeei ser madrasta — mas hoje invisto nestas crianças como se fossem minhas porque aprendi que amor não se divide; multiplica-se.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias há por aí como a minha? Quantas mulheres vivem esta luta silenciosa entre dar demais e sentir-se sempre de menos? E vocês — já sentiram que amam alguém sem nunca terem sido convidados para isso?