Nunca pensei que o meu filho se afastasse tanto: a minha nora trata-me como uma estranha
— Rui, tu não vais mesmo vir ao almoço de domingo? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz enquanto segurava o telefone com força.
Do outro lado, ouvi um suspiro abafado. — Mãe, já falámos sobre isto. A Vera não gosta muito de ir aí. Prefere que fiquemos em casa, só nós os dois.
O silêncio caiu pesado entre nós. Senti o coração apertar-se, como se alguém me tivesse tirado o chão. Lembrei-me de quando o Rui era pequeno e corria para os meus braços sempre que caía. Agora, parecia que era eu quem precisava de colo, mas ele já não estava ali para mim.
Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Sempre fui uma mãe presente, talvez até demasiado. Depois da morte do António, o meu marido, dediquei-me por inteiro ao Rui. Fui mãe, pai, amiga e confidente. Quando ele conheceu a Vera, há oito anos, fiquei feliz por vê-lo apaixonado. Mas depressa percebi que aquela felicidade tinha um preço.
A primeira vez que trouxe a Vera cá a casa, ela mal falou comigo. Sorria pouco e parecia desconfortável com tudo: com a comida, com as fotografias do Rui em pequeno espalhadas pela sala, até com o cheiro do meu arroz de pato. Achei que era timidez. Mas com o tempo percebi que era mais do que isso.
— Não percebo porque é que ela não gosta de mim — desabafei uma vez à minha irmã, a Teresa, enquanto bebíamos café na varanda.
— Talvez seja insegurança dela — respondeu-me a Teresa, sempre diplomática. — Ou então sente-se ameaçada pela tua relação com o Rui.
Ameaçada? Eu? Só queria fazer parte da vida deles. Mas cada convite recusado, cada telefonema apressado, cada Natal em que ficava sozinha enquanto eles iam para casa dos pais dela… tudo isso foi criando uma distância impossível de ignorar.
No último aniversário do Rui, comprei-lhe um relógio bonito e escrevi-lhe uma carta. Esperei horas por um telefonema de agradecimento. Só à noite recebi uma mensagem: “Obrigado mãe. Estou cansado hoje. Falamos depois.” Não falámos.
Comecei a sentir-me invisível. Os meus dias passaram a ser preenchidos com silêncios e recordações. Oiço os vizinhos falarem dos netos, das visitas dos filhos ao domingo, das festas em família. Eu fico à janela a ver o tempo passar.
Certa tarde, decidi ir até à casa deles sem avisar. Levei um bolo de laranja ainda quente e bati à porta com esperança. A Vera abriu e olhou-me como se eu fosse uma vendedora indesejada.
— Maria do Carmo… não estávamos à espera de visitas — disse ela, sem sorrir.
— Eu sei… mas fiz bolo e lembrei-me de vocês — tentei justificar-me.
Ela hesitou antes de me deixar entrar. O Rui estava na sala a ver televisão. Levantou-se e deu-me um beijo na face, mas senti-o distante.
— Mãe, da próxima vez avisa antes de vir — disse ele baixinho, como se tivesse medo que a Vera ouvisse.
Senti-me tão pequena naquele momento. Sentei-me no sofá e tentei conversar sobre trivialidades: o tempo, as notícias, as obras na rua. A Vera mal falou comigo. Quando me levantei para ir embora, percebi que não era bem-vinda ali.
No caminho para casa chorei como há muito não chorava. Senti raiva da Vera por afastar o meu filho de mim. Senti raiva do Rui por permitir isso. Mas acima de tudo senti-me sozinha.
As semanas passaram e os convites foram ficando cada vez mais raros — ou melhor, inexistentes. No Natal seguinte comprei presentes para os dois e deixei-os à porta deles porque “tinham planos”. Passei a noite sozinha a ver fotografias antigas do Rui em criança.
A Teresa tentou animar-me:
— Tens de aceitar que ele tem outra família agora.
Mas como se aceita perder um filho para outra pessoa? Como se aprende a ser espectadora da vida de quem amamos mais do que tudo?
Um dia recebi uma chamada inesperada do Rui:
— Mãe… preciso falar contigo.
O coração disparou. Pensei que finalmente ele ia abrir-se comigo, pedir desculpa, convidar-me para jantar.
— A Vera está grávida — disse ele num tom neutro.
Fiquei sem palavras durante uns segundos. Depois sorri, mesmo sabendo que ele não podia ver.
— Que alegria! Quando posso ir ver-vos?
— Mãe… vamos tentar fazer isto devagarinho. A Vera não quer muita confusão agora no início…
Mais uma vez fiquei à margem de um dos momentos mais importantes da vida dele.
Durante meses acompanhei a gravidez à distância: mensagens curtas, fotografias enviadas pela Teresa (que seguia a Vera nas redes sociais), notícias dadas por terceiros. Quando a pequena Matilde nasceu, fui chamada ao hospital apenas para uma visita rápida.
Olhei para aquela bebé e senti um amor tão grande que quase me sufocou. Mas também senti medo: medo de nunca fazer parte da vida dela como fiz da vida do Rui.
Tentei ser paciente. Ofereci-me para ajudar com a bebé, para cozinhar refeições ou ficar com ela quando precisassem descansar. A resposta era sempre a mesma:
— Obrigada, Maria do Carmo, mas não é preciso.
Comecei a duvidar de mim própria: teria feito algo errado? Teria sido demasiado presente? Teria sufocado o Rui sem perceber?
Uma noite liguei-lhe em lágrimas:
— Rui… eu só quero fazer parte da tua vida. Sinto tanto a vossa falta…
Do outro lado ouvi apenas silêncio e depois um suspiro cansado:
— Mãe… é complicado. A Vera acha que tu não respeitas o nosso espaço.
Respeitar o espaço? E o meu espaço no coração dele? E o espaço que dediquei toda a minha vida?
Os dias foram passando e fui aprendendo a viver com esta ausência forçada. Passei a ocupar os meus dias com voluntariado na igreja e passeios com amigas da minha idade. Mas nada preenche o vazio deixado pelo afastamento do meu filho.
Às vezes pergunto-me se devia ter lutado mais ou se devia ter deixado ir mais cedo. Se devia ter confrontado a Vera ou simplesmente aceitado as regras dela desde o início.
Hoje olho para as fotografias do Rui em pequeno e penso em tudo o que perdemos nestes anos de silêncio e distância. Penso na Matilde a crescer sem conhecer verdadeiramente a avó que tanto a ama.
Será que algum dia vou recuperar o meu filho? Será que o amor de mãe é suficiente para reconstruir pontes quebradas?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde deve ir uma mãe para não perder o filho?