Nunca pensei que ainda pudesse amar: A história de uma segunda chance
— Mãe, não podes continuar assim. — A voz da minha filha, Inês, ecoava pela cozinha, misturada com o cheiro do café acabado de fazer. — Já passaram cinco anos desde que o pai morreu. Tens de sair, conhecer pessoas…
Olhei para ela, sentada à mesa onde tantas vezes partilhámos risos e discussões. O sol da manhã entrava pela janela, iluminando as rugas que o tempo me deu. Oiço-a, mas não consigo responder. O António era tudo para mim. Quarenta anos juntos, desde os bancos da escola primária em Setúbal até à nossa casa pequena em Almada. Ele era o meu mundo seguro, o meu porto de abrigo.
— Inês, eu estou bem assim. Tenho os meus livros, o meu tricô… — tentei sorrir, mas a voz saiu-me trémula.
Ela suspirou, impaciente. — Não é vida, mãe. O pai não ia querer ver-te assim.
Fiquei calada. Como explicar-lhe que o vazio que ficou não se preenche com palavras ou passeios? Que há silêncios que só quem perdeu entende? Mas ela tinha razão numa coisa: eu estava a desaparecer aos poucos.
Naquela noite, sentei-me sozinha na sala. O relógio marcava dez e meia. Peguei numa fotografia antiga: eu e o António na praia da Costa da Caparica, jovens e felizes. Senti uma lágrima escorrer-me pela face.
— Ainda me lembras, António? — sussurrei para a fotografia.
No dia seguinte, cedi aos pedidos da Inês e fui ao centro de dia do bairro. Não queria conversar, mas a solidão pesa mais quando se está rodeada de silêncio. Lá conheci a Dona Rosa, sempre pronta para um chá e uma conversa sobre novelas; o Sr. Manuel, viúvo como eu, que falava dos netos com orgulho; e o Joaquim.
O Joaquim era diferente. Tinha olhos azuis claros e um sorriso tímido. Falava pouco, mas quando falava era certeiro. Um dia, depois de um jogo de cartas, sentou-se ao meu lado no jardim.
— Gosta de fado? — perguntou-me.
Sorri. — O António adorava ouvir Amália nas noites de domingo.
Ele acenou com a cabeça. — Eu também perdi a minha Maria há seis anos. Achei que nunca mais ia conseguir sorrir… mas às vezes a vida surpreende-nos.
Ficámos ali sentados em silêncio, a ouvir os pardais no fim da tarde. Senti uma paz estranha, como se alguém me tivesse tirado um peso do peito.
Os dias passaram e comecei a esperar pelos encontros no centro. O Joaquim trazia-me sempre um pastel de nata escondido no bolso do casaco. Ríamos dos nossos esquecimentos e das dores nas costas. Um dia convidou-me para ir ao mercado municipal com ele.
— Preciso de ajuda para escolher peixe fresco — disse ele, meio envergonhado.
Aceitei. No mercado, entre os pregões das peixeiras e o cheiro a marisco fresco, senti-me viva outra vez. O Joaquim fazia piadas com as vendedoras e eu ria-me como há muito não ria.
Mas nem tudo era fácil. A Inês começou a notar as minhas ausências.
— Mãe, tens andado diferente… — comentou ela numa noite ao jantar.
— Tenho ido ao centro de dia. Fiz amigos — respondi, tentando soar casual.
Ela olhou-me com desconfiança. — Amigos? Ou… alguém?
Corei como uma adolescente apanhada em flagrante.
— O Joaquim é só um amigo — disse depressa demais.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Mãe… tens direito a ser feliz. Mas não te esqueças do pai.
Senti uma pontada no peito. Como podia esquecer o António? Mas também não podia continuar a viver só de memórias.
As semanas passaram e eu e o Joaquim fomos ficando cada vez mais próximos. Um dia ele apareceu à porta de casa com um ramo de flores do campo.
— Para ti — disse ele, corando até às orelhas.
Senti o coração disparar como há décadas não sentia. Convidei-o para entrar e fizemos chá juntos. Conversámos sobre tudo: os filhos dele que emigraram para França, as saudades dos netos, as noites frias em casa vazia.
Nessa noite, depois de ele ir embora, liguei à minha irmã Maria.
— Achas que estou a trair o António? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ela riu-se do outro lado da linha.
— Oh Ana, o António só queria ver-te feliz! Não tens culpa de ainda teres coração para dar.
Mas nem todos pensavam assim. O meu filho mais velho, Miguel, ficou furioso quando soube do Joaquim.
— A mãe não tem vergonha? O pai ainda nem arrefeceu e já anda aí feita adolescente! — gritou ele numa discussão acesa na sala.
Senti-me pequena, envergonhada. A Inês tentou defendê-lo:
— Miguel, chega! A mãe merece ser feliz!
Mas ele saiu porta fora sem olhar para trás.
Nessa noite chorei como há muito não chorava. Senti-me dividida entre dois mundos: o passado com o António e o presente incerto com o Joaquim.
Os dias seguintes foram difíceis. Evitava sair de casa para não enfrentar os olhares dos vizinhos ou os comentários sussurrados no café da esquina. Mas o Joaquim não desistiu de mim.
— Ana, não podemos viver para agradar aos outros — disse ele num desses dias tristes. — Já perdemos demasiado tempo com medo do que vão dizer.
Ele tinha razão. Aos poucos fui ganhando coragem para enfrentar os olhares e os julgamentos. Comecei a sair mais vezes com ele: passeios à beira-rio em Lisboa, tardes no cinema antigo do bairro, jantares simples em casa dele onde cozinhávamos juntos bacalhau à Brás e ríamos dos nossos desastres culinários.
A relação com os meus filhos foi-se recompondo devagarinho. O Miguel demorou mais tempo a aceitar, mas um dia apareceu em minha casa com um bolo feito pela mulher dele.
— Se estás feliz… eu aceito — disse ele sem me olhar nos olhos.
Abracei-o com força e senti finalmente um peso sair-me dos ombros.
Hoje olho para trás e vejo como a vida pode mudar num instante. Nunca pensei que fosse possível amar outra vez depois do António. Mas aprendi que o coração tem espaço para mais do que uma história bonita.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só vida? Quantas vezes podemos recomeçar sem perder quem fomos? E vocês… já tiveram coragem de dar uma segunda oportunidade ao vosso coração?