Nunca Imaginei Que Visitar a Minha Filha Me Faria Passar a Noite Num Hotel

— Mãe, não podes ficar cá esta noite. — As palavras da Mariana ecoaram no corredor frio do prédio, enquanto eu segurava a mala com as duas mãos, o coração a bater tão forte que quase me doía no peito.

Olhei para o António, meu marido, que tentava disfarçar o embaraço com um sorriso amarelo. Ele sempre foi mais diplomático do que eu, mas naquele momento nem ele sabia o que dizer. A Mariana estava ali, à nossa frente, com os braços cruzados e o olhar duro — tão diferente da menina que eu embalei nos braços durante tantas noites de febre e pesadelos.

— Mariana, filha, viemos de Coimbra para te ver. Disseste que podíamos ficar o fim de semana… — tentei manter a voz firme, mas senti-a tremer.

Ela suspirou, desviando o olhar para o chão.

— Eu sei, mãe. Mas as coisas mudaram. O João não se sente confortável com vocês aqui em casa. Tivemos uma discussão por causa disso. Não quero problemas.

O João. O namorado dela há quase dois anos. Nunca me caiu no goto, confesso. Sempre achei que ele tinha um ar distante, pouco dado à família. Mas nunca imaginei que seria ele a decidir se eu podia ou não dormir na casa da minha filha.

O António pousou a mão no meu ombro.

— Mariana, filha, não faz sentido irmos para um hotel. Viemos para estar convosco…

Ela mordeu o lábio inferior, claramente desconfortável.

— Desculpem. Eu devia ter avisado antes. Mas não consegui…

O silêncio instalou-se entre nós como uma parede de vidro. Lá fora, a chuva começava a cair com força, batendo nos vidros do prédio lisboeta onde ela agora vivia.

— Então é isso? — perguntei, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Viemos até aqui para sermos postos fora?

A Mariana não respondeu. Limitou-se a encolher os ombros e a abrir-nos a porta do elevador.

No caminho para o hotel — um daqueles frios e impessoais perto do Marquês de Pombal — tentei conter as lágrimas. O António ia calado ao meu lado, olhando pela janela embaciada do táxi.

— Não chores, Maria — disse ele baixinho. — Talvez ela esteja só cansada…

Mas eu sabia que não era cansaço. Era distância. Era o resultado de anos de pequenas discussões, de expectativas defraudadas, de palavras ditas e não ditas.

Lembro-me da última vez que discutimos a sério. Foi no Natal passado. A Mariana queria passar a consoada com os pais do João, em Braga. Eu insisti para que viesse connosco, como sempre tinha sido. Ela acabou por ir para Braga e eu passei a noite a chorar na cozinha enquanto o António tentava animar-me com piadas sem graça.

No hotel, sentámo-nos na cama dura e olhámos um para o outro.

— Achas que fizemos alguma coisa mal? — perguntei.

O António encolheu os ombros.

— Fomos pais como sabíamos ser. Demos-lhe tudo…

Mas será que demos mesmo? Ou será que lhe demos demasiado? Sempre quis protegê-la de tudo: das más companhias, das más notas, dos desgostos amorosos. Talvez tenha sido demasiado controladora…

Na manhã seguinte, liguei-lhe. Atendeu ao terceiro toque.

— Mãe?

— Mariana, podemos tomar o pequeno-almoço juntos?

Ela hesitou.

— O João foi trabalhar cedo… Podes vir cá agora.

Fomos a correr. Quando chegámos, ela estava sentada à mesa da cozinha, com uma chávena de café nas mãos e os olhos inchados.

— Dormiste mal? — perguntei.

Ela assentiu.

— Mãe… Pai… Desculpem por ontem. Mas eu preciso do meu espaço. O João sente-se invadido quando vocês vêm cá dormir…

O António tentou suavizar:

— Mas somos teus pais! Não somos estranhos!

A Mariana olhou para mim com uma tristeza profunda.

— Eu sei… Mas vocês não percebem… Sempre quiseram controlar tudo na minha vida. Até agora…

Senti um nó na garganta.

— Mariana, só queremos o melhor para ti…

Ela abanou a cabeça.

— O melhor para mim ou o melhor para vocês? Sempre quiseste que eu fosse médica como tu, mãe. Sempre quiseste escolher os meus amigos, os meus namorados… Eu preciso de ser eu própria!

O António ficou calado. Eu senti-me pequena como uma criança castigada.

— Mariana… — tentei dizer qualquer coisa, mas ela interrompeu-me:

— Não quero discutir mais isto agora. Só quero que percebam que preciso de espaço. Preciso de aprender a viver à minha maneira.

Saímos dali em silêncio. No táxi de volta ao hotel, chorei baixinho enquanto o António me segurava a mão.

Quando voltámos para Coimbra, metade dos nossos amigos ficou indignada com a atitude da Mariana. “Como é possível? Depois de tudo o que fizeste por ela!”, diziam-me na pastelaria onde costumo tomar café ao domingo. Outros diziam: “Maria, tens de aceitar que ela cresceu. Não podes querer controlar tudo.” O meu irmão Francisco foi dos mais duros:

— Maria, tu sempre foste demasiado em cima dela. Agora colhes o que semeaste.

Essas palavras doeram mais do que qualquer outra coisa.

Durante semanas tentei perceber onde tinha falhado. Revivi cada discussão, cada conselho não pedido, cada vez que lhe disse “não faças isso” ou “não vás por aí”. Será que fui mesmo uma mãe demasiado presente? Ou será que hoje em dia os filhos já não querem saber dos pais?

O António tentava animar-me:

— Ela vai voltar, Maria. Vais ver…

Mas eu sentia um vazio enorme dentro de mim. A casa parecia maior e mais fria sem as visitas da Mariana ao fim de semana.

Um dia recebi uma mensagem dela:

“Mãe, desculpa por tudo. Preciso mesmo do meu espaço agora. Amo-vos muito.”

Chorei tanto nesse dia que pensei que nunca mais ia parar.

Hoje escrevo-vos porque metade dos nossos amigos e familiares acha que fomos nós que errámos; outros acham que foi ela. Eu só sei que dói muito sentir-me afastada da minha filha — aquela menina por quem dei tudo e mais alguma coisa.

Será que fui demasiado controladora? Ou será este o preço inevitável de ver os filhos crescerem e fazerem as suas escolhas? Gostava mesmo de saber: alguém já passou por isto? Como é que se aprende a deixar ir quem mais amamos?