Nunca fui criada da minha sogra – a história de Magda de Braga

— Magda, já lavaste a loiça do almoço? — a voz da minha sogra ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro a bacalhau que ainda pairava no ar. Eu estava sentada à mesa da cozinha, com as mãos trémulas e o olhar perdido na janela, onde a chuva miudinha caía sobre Braga. Oiço o meu nome de novo, mais alto, mais impaciente. — Magda! Não te estou a pagar para ficares aí sentada!

Engoli em seco. Não era a primeira vez que ouvia aquela frase, mas cada vez doía mais. Não, ela não me pagava. Eu era nora, não empregada. Mas para a Dona Lurdes, desde o dia em que casei com o Rui, parecia que tinha assinado um contrato invisível: cuidar da casa, servir à mesa, sorrir mesmo quando me apetecia chorar.

O Rui, o meu marido, estava no sofá da sala, absorto no telejornal. Parecia não ouvir nada. Ou talvez preferisse não ouvir. Quantas vezes lhe pedi para falar com a mãe? Quantas vezes chorei baixinho à noite, com medo de acordar o nosso filho, o pequeno Tomás? Mas Rui limitava-se a encolher os ombros. “Sabes como é a minha mãe, Magda. Não vale a pena.”

Mas para mim valia. Cada dia era uma batalha silenciosa. Acordava antes de todos, preparava o pequeno-almoço, vestia o Tomás, levava-o à creche, voltava para casa para ajudar a Dona Lurdes com as tarefas. Ela nunca agradecia. Pelo contrário, encontrava sempre defeitos. “A roupa não ficou bem passada.” “O arroz está empapado.” “O chão ainda tem pó.”

Lembro-me de um domingo em particular. Estávamos todos à mesa, a família reunida. O meu cunhado, o Pedro, e a mulher dele, a Sofia, tinham vindo de Lisboa. Dona Lurdes, como sempre, elogiou a Sofia. “Tão prendada, tão elegante. O Pedro teve sorte.” Olhou para mim de lado. “Magda, passa-me o sal.”

Senti o rosto a arder. A Sofia nunca mexia uma palha quando vinha cá. Sentava-se, ria, contava histórias do trabalho. Eu, pelo contrário, era invisível. Só me viam quando faltava alguma coisa.

Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me na varanda. A cidade dormia, mas dentro de mim tudo era ruído. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha mãe: “Não aguento mais. Sinto-me uma estranha na minha própria casa.”

A resposta veio rápida: “Filha, tens de te impor. Não és criada de ninguém.”

Mas como? Como impor-me numa casa que nunca foi verdadeiramente minha? O Rui dizia que era temporário, que um dia teríamos o nosso espaço. Mas os meses passavam, os anos passavam, e nada mudava.

O Tomás crescia. Começou a perguntar porque é que a avó ralhava tanto comigo. “A mãe está triste?” — perguntava-me, com aqueles olhos grandes e inocentes. Eu sorria, dizia que estava tudo bem. Mas não estava.

O ponto de rutura chegou numa tarde de verão. Estava a estender roupa no quintal quando ouvi gritos vindos da cozinha. Corri para dentro e vi Dona Lurdes a discutir com o Rui. “A tua mulher não faz nada direito! Esta casa está uma vergonha!”

O Rui, finalmente, levantou a voz. “Mãe, chega! A Magda faz tudo sozinha, e tu só sabes criticar!”

Fiquei paralisada. Nunca o tinha visto assim. Mas Dona Lurdes não se calou. “Se não gostam, vão-se embora! Esta casa é minha!”

O Rui olhou para mim. Vi nos olhos dele o medo, a dúvida. “Magda, vamos?”

O meu coração batia descompassado. Era a oportunidade de sair, de recomeçar. Mas para onde? Não tínhamos dinheiro para alugar casa, os salários mal davam para as despesas. E o Tomás? A creche, os amigos, a rotina…

Nessa noite, depois de deitar o Tomás, sentei-me com o Rui. “Não aguento mais. Preciso de respirar. Preciso de ser eu.”

Ele abraçou-me, mas senti-o distante. “Eu sei, Magda. Mas não é fácil. A minha mãe sempre foi assim.”

“E eu? Eu não conto?”

O silêncio dele doeu mais do que qualquer palavra da sogra.

No dia seguinte, tomei uma decisão. Liguei à minha mãe. “Posso ir para tua casa uns dias? Preciso de pensar.”

Ela nem hesitou. “Claro, filha. Vem quando quiseres.”

Arrumei algumas roupas, peguei no Tomás e saí. Dona Lurdes nem apareceu à porta. O Rui ficou parado no corredor, sem saber o que dizer.

Na casa da minha mãe, senti-me leve pela primeira vez em anos. O Tomás brincava no quintal, eu ajudava a minha mãe na cozinha, mas sem cobranças, sem críticas. Dormi uma noite inteira sem acordar sobressaltada.

O Rui ligava todos os dias. “Quando voltas? A minha mãe está furiosa.”

“Não sei se volto, Rui. Preciso de pensar na minha vida. Preciso que escolhas: eu ou a tua mãe.”

Ele ficou em silêncio. Dias passaram. A saudade apertava, mas a liberdade era maior.

Uma tarde, o Rui apareceu à porta da minha mãe. Trazia uma mala na mão.

“Magda, não aguento mais aquela casa sem ti. Falei com um amigo, vamos ficar num T1 pequeno, mas é nosso. Quero recomeçar contigo.”

Chorei. Abracei-o. O Tomás correu para ele. Pela primeira vez, senti esperança.

Mudámo-nos para o pequeno apartamento. Era apertado, modesto, mas era nosso. Dona Lurdes deixou de falar connosco. O Pedro e a Sofia tentaram mediar, mas ela era irredutível.

Aos poucos, reconstruímos a nossa vida. O Rui aprendeu a cozinhar, a ajudar nas tarefas. O Tomás crescia feliz. Eu voltei a estudar, arranjei um trabalho numa loja. Pela primeira vez, sentia-me dona do meu destino.

Às vezes, penso na Dona Lurdes. Sinto pena, mas não saudade. Talvez um dia nos reconciliemos. Mas agora, sou eu quem decide o meu caminho.

Pergunto-me: quantas mulheres em Portugal vivem presas a expectativas alheias? Quantas Magdas existem, caladas, invisíveis? E vocês, já tiveram de escolher entre a vossa felicidade e a vontade dos outros?