Nunca Esperei Isto dos Meus Pais: Mandaram-me Voltar para o Meu Marido e Fecharam-me a Porta na Cara

— Não quero ouvir mais desculpas, Leonor! — gritou o António, atirando as chaves para cima da mesa da cozinha. O som metálico ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do jantar queimado que eu já nem tinha forças para salvar. Senti o coração apertar-se no peito, como se cada palavra dele fosse um prego a cravar-se na minha pele.

— Eu só queria conversar… — murmurei, tentando controlar as lágrimas. Mas ele já tinha virado costas, deixando-me sozinha com o silêncio pesado e o nó na garganta.

Não era a primeira vez. Nos últimos meses, as discussões tinham-se tornado rotina. Pequenas coisas — o jantar atrasado, a roupa por passar, um olhar trocado a despropósito — tudo servia de faísca para uma explosão. Eu tentava sempre apaziguar, mas sentia-me cada vez mais invisível, como se a minha voz não tivesse peso naquela casa.

Naquela noite, depois de ouvir mais insultos do que conseguia suportar, peguei no casaco e saí. As ruas de Coimbra estavam frias e húmidas, mas caminhei sem hesitar até à casa dos meus pais. O caminho parecia mais longo do que nunca, cada passo carregado de dúvidas e medo.

Quando cheguei, bati à porta com mãos trémulas. A minha mãe abriu-a, mas não sorriu. O meu pai apareceu logo atrás dela, com o rosto fechado.

— Leonor? O que fazes aqui a esta hora? — perguntou ele, sem sequer me convidar a entrar.

— Preciso de falar convosco… — comecei, mas a voz falhou-me. Senti as lágrimas a escorrerem pelo rosto.

A minha mãe cruzou os braços. — Outra vez problemas com o António?

Assenti, incapaz de falar. Ela suspirou alto.

— Leonor, tu complicas tudo — disse ela, balançando a cabeça. — Sempre foste assim, tão sensível…

O meu pai interrompeu-a:

— Olha, filha, tens de aprender a lidar com o teu marido. Não podes vir para aqui cada vez que discutem.

— Mas eu… eu não aguento mais… — tentei explicar, mas eles nem me deixaram acabar.

— Volta para casa — disse o meu pai, seco. — O casamento é assim mesmo. Tens de saber ceder.

A minha mãe fechou a porta devagar, mas firme. Fiquei ali na rua, sozinha, com o frio a entranhar-se nos ossos e uma dor surda no peito.

Sentei-me no passeio em frente à casa deles. Lembrei-me de quando era criança e corria para os braços da minha mãe sempre que caía e esfolava os joelhos. Agora, parecia que já não havia colo para mim.

Peguei no telemóvel e liguei à minha irmã mais nova, a Sofia. Ela atendeu ao segundo toque.

— Leonor? Está tudo bem?

— Preciso de falar contigo…

Ela ouviu-me em silêncio enquanto eu desabafava tudo: as discussões com o António, a solidão em casa, e agora aquela rejeição dos nossos pais.

— Vem cá para casa — disse ela sem hesitar. — Não fiques aí sozinha.

Caminhei até ao apartamento dela, do outro lado da cidade. Quando cheguei, ela abriu-me a porta e abraçou-me com força.

— Eles nunca vão perceber… — sussurrei-lhe ao ouvido.

Sofia fez-me chá e sentámo-nos no sofá. Pela primeira vez em muito tempo senti-me ouvida.

— Sempre foste a filha certinha — disse ela. — Eles acham que tens de aguentar tudo porque foi assim que nos ensinaram. Mas não tens de aceitar ser infeliz.

Chorei tudo o que tinha para chorar naquela noite. Sofia ficou comigo até adormecer no sofá.

No dia seguinte acordei com mensagens do António:

“Volta para casa.”
“Estás a fazer figura de parva.”
“Os teus pais têm razão.”

Olhei para o telemóvel e senti uma raiva nova a crescer dentro de mim. Porque é que toda a gente achava que eu era o problema? Porque é que ninguém via como eu me sentia?

Durante dias fiquei em casa da Sofia. Os meus pais não ligaram uma única vez. A minha mãe mandou apenas uma mensagem curta: “Espero que já tenhas voltado ao teu lugar.”

O António apareceu à porta da Sofia ao fim de uma semana. Bateu insistentemente até ela abrir.

— Leonor, vamos embora — disse ele, sem sequer me olhar nos olhos.

— Não vou voltar — respondi-lhe pela primeira vez sem hesitar.

Ele ficou parado à porta, incrédulo.

— Vais deixar que uma birra estrague tudo?

— Não é uma birra — respondi-lhe. — É a minha vida.

Ele bufou e foi-se embora sem dizer mais nada.

A partir desse dia comecei a reconstruir-me aos poucos. Procurei ajuda psicológica no centro de saúde local. Falei com amigas antigas que há muito tinha deixado para trás por causa do António. Descobri que não estava sozinha: tantas mulheres à minha volta tinham histórias parecidas, silenciadas pelo medo ou pela vergonha.

Os meus pais continuaram distantes. No Natal desse ano fui convidada para jantar em casa da Sofia. Os meus pais foram também, mas mal me dirigiram a palavra durante toda a noite. A minha mãe olhava-me como se eu fosse uma estranha; o meu pai nem sequer me cumprimentou quando cheguei.

No fim do jantar levantei-me e disse:

— Sei que vos desiludi. Sei que esperavam outra coisa de mim. Mas eu não podia continuar a viver assim. Só queria que percebessem isso.

A minha mãe desviou o olhar; o meu pai continuou calado.

Saí dali com o coração partido mas leve. Pela primeira vez em muitos anos senti que estava finalmente a ser fiel a mim própria.

Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Coimbra. Trabalho numa livraria e voltei a estudar à noite. Ainda sinto falta do carinho dos meus pais, mas aprendi a dar valor à minha própria voz.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao silêncio por medo de desiludir quem mais amam? E será que algum dia os nossos pais vão perceber que ser feliz não é uma traição?