Nunca Esperei Isto dos Meus Pais: Mandaram-me Voltar para o Meu Marido e Fecharam-me a Porta na Cara

— Não, mãe, desta vez não consigo mesmo voltar para casa. — As palavras saíram-me num sussurro, quase engolidas pelo vento frio daquela noite de janeiro. O portão da casa dos meus pais parecia mais pesado do que nunca, e eu tremia, não só do frio, mas do medo do que me esperava do outro lado.

A minha mãe abriu a porta com um olhar cansado. O cheiro a sopa de legumes escapava da cozinha, misturado com o som abafado da televisão na sala. O meu pai nem se levantou do sofá. — O que é agora, Mariana? — perguntou ela, sem sequer me convidar a entrar.

Senti as lágrimas a ameaçarem cair, mas engoli em seco. — O António voltou a gritar comigo. Atirou-me com o prato ao chão porque o jantar estava frio. Eu… eu não aguento mais.

A minha mãe suspirou, cruzando os braços. — Mariana, tu sabes como és. Sempre foste sensível demais. Fazes um drama de tudo. O António trabalha tanto, chega cansado… —

— Não é desculpa! — interrompi, sentindo a voz tremer. — Ele não tem o direito de me tratar assim!

O meu pai levantou finalmente os olhos do telejornal. — Olha lá, filha, tu escolheste casar com ele. Agora aguenta. Não venhas para aqui cada vez que há uma discussão.

Fiquei ali parada, à porta, como uma criança perdida. O frio entrava-me pelos ossos. — Só queria… só queria sentir-me segura por uma noite. Só isso.

A minha mãe abanou a cabeça, já impaciente. — Mariana, volta para casa. Amanhã tudo passa. Não podes fugir sempre dos problemas.

— Mas mãe… — tentei argumentar, mas ela já estava a fechar a porta.

— Vai para casa, Mariana. E pensa bem nas tuas atitudes. — E com um clique seco, fiquei sozinha na rua.

Sentei-me no degrau da entrada, abraçando os joelhos ao peito. O telemóvel vibrava no bolso — mensagens do António: “Onde estás?”, “Volta já para casa”, “Não faças figuras”.

Lembrei-me de quando era pequena e corria para o colo da minha mãe sempre que tinha medo do escuro ou fazia um pesadelo. Agora, o escuro era real e ninguém me queria proteger dele.

Levantei-me devagar e comecei a andar sem destino pelas ruas desertas do bairro. As luzes das casas acesas mostravam famílias reunidas à mesa, risos abafados pelas paredes. Senti uma inveja amarga a crescer dentro de mim.

O António não era sempre assim. No início era carinhoso, atencioso, fazia-me sentir especial. Mas com o tempo vieram as críticas, as pequenas humilhações à frente dos amigos, os silêncios gelados depois das discussões. E eu fui ficando cada vez mais pequena dentro de mim mesma.

No trabalho ninguém sabia nada disto. Eu era a Mariana eficiente, sempre pronta a ajudar os colegas, sempre com um sorriso nos lábios. Mas por dentro sentia-me vazia.

Lembrei-me da última vez que tentei falar com a minha mãe sobre o que sentia: “Isso são coisas da tua cabeça”, disse ela. “No meu tempo as mulheres aguentavam muito mais.”

Continuei a andar até chegar ao parque onde costumava brincar em criança. Sentei-me num banco e deixei finalmente as lágrimas correrem livremente pelo rosto gelado.

— Porque é que ninguém me ouve? — murmurei para mim mesma.

O telemóvel tocou outra vez. Era a minha irmã mais nova, Sofia.

— Mariana? Onde estás? A mãe ligou-me preocupada…

— Preocupada? Ela acabou de me fechar a porta na cara…

— Ela disse que estavas nervosa… Olha, queres vir cá a casa? O Miguel está a trabalhar até tarde…

Hesitei. A Sofia sempre foi diferente dos meus pais: mais aberta, mais compreensiva. Mas não queria ser um peso para ela também.

— Não quero incomodar…

— Mariana, tu nunca incomodas! Anda cá, por favor.

Aceitei o convite e caminhei até ao prédio dela. Quando cheguei, ela abriu-me os braços e eu desabei.

— Eles nunca me ouvem, Sofia… Nunca! — soluçava eu.

Ela fez-me chá e sentámo-nos no sofá da sala pequena mas acolhedora.

— Já pensaste em sair de casa? — perguntou ela baixinho.

— E ir para onde? Não tenho dinheiro suficiente para alugar nada sozinha… E se ele não me deixar levar as minhas coisas? E se…

— Mariana, tens de pensar em ti primeiro! Não podes continuar assim…

Ficámos em silêncio durante uns minutos. O relógio marcava quase meia-noite quando decidi enviar uma mensagem ao António: “Hoje não volto para casa.”

Ele respondeu quase de imediato: “Se não voltares agora, não voltes nunca mais.”

Olhei para a Sofia com medo nos olhos.

— Achas que ele fala a sério?

Ela encolheu os ombros: — Talvez seja melhor assim…

Na manhã seguinte acordei com uma sensação estranha de leveza misturada com pânico. A Sofia foi trabalhar cedo e deixou-me as chaves de casa.

Passei o dia inteiro a pensar no que fazer. Liguei à minha mãe mas ela não atendeu. O meu pai mandou-me uma mensagem curta: “Resolve isso com o teu marido.”

Senti-me órfã de pais vivos.

À tarde fui buscar algumas roupas a casa enquanto o António estava no trabalho. A cada passo sentia o coração aos pulos no peito. Peguei numa mala pequena e saí sem olhar para trás.

Durante semanas vivi entre casa da Sofia e o sofá de uma amiga do trabalho. Os meus pais não me ligaram uma única vez. No trabalho comecei a faltar por causa das noites mal dormidas e das crises de ansiedade.

Um dia recebi uma carta dos meus pais: “A família é para ser preservada acima de tudo. Esperamos que penses bem no que estás a fazer.”

Chorei tanto ao ler aquelas palavras frias que pensei que nunca mais ia conseguir confiar em ninguém.

Aos poucos fui reconstruindo a minha vida. Arranjei um quarto numa casa partilhada com outras raparigas na mesma situação que eu: todas fugidas de relações tóxicas ou famílias que não as compreendiam.

Aprendi a cozinhar só para mim, a gostar do silêncio da minha própria companhia, a sair sozinha ao domingo para passear junto ao rio Tejo e sentir o vento na cara como uma promessa de liberdade.

A Sofia nunca me largou a mão nesse processo todo. Foi ela quem me acompanhou à advogada quando decidi pedir o divórcio; foi ela quem me ajudou a encontrar um novo emprego quando fui despedida por faltas; foi ela quem me lembrou todos os dias que eu merecia ser feliz.

Os meus pais continuaram distantes durante meses. Só voltaram a falar comigo quando souberam pela vizinha que eu estava doente com uma gripe forte e internada no hospital por causa de uma pneumonia.

A minha mãe apareceu no quarto do hospital com um ramo de flores murchas e um olhar culpado.

— Mariana… desculpa… nós só queríamos o melhor para ti…

Olhei para ela sem saber se devia perdoar ou gritar tudo o que tinha guardado dentro de mim durante tanto tempo.

— O melhor para mim seria ter tido apoio quando mais precisei…

Ela chorou baixinho ao meu lado enquanto eu olhava pela janela do hospital para o céu cinzento de Lisboa.

Agora, passados dois anos desde aquela noite em que me fecharam a porta na cara, ainda sinto um nó no estômago sempre que passo pela casa dos meus pais. Ainda tenho medo de confiar plenamente em alguém. Mas também sei que sou muito mais forte do que alguma vez imaginei ser.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres como eu existem por aí, presas entre o medo e o silêncio? Quantas portas se fecham todos os dias quando alguém só precisa de um abraço? E vocês? Já sentiram esta solidão dentro da própria família?