Nora Que Não Pertence: Drama Familiar em Dois Quartos e Uma Cozinha
— Não é justo, Leonor! — a voz da Mariana ecoou pela cozinha, enquanto eu apertava o pano de prato nas mãos, tentando controlar o tremor. — Não posso ser a única a limpar tudo só porque sou a mais nova aqui!
Olhei para ela, sentindo o sangue ferver nas veias. O relógio da parede marcava quase oito da noite e o cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, misturado ao perfume doce do detergente. O meu filho, Tiago, estava sentado à mesa, olhos baixos, mexendo no telemóvel como se ali não estivesse. O meu marido, António, fingia ler o jornal, mas eu sabia que cada palavra da discussão lhe chegava aos ouvidos.
— Mariana, nesta casa sempre foi assim — respondi, tentando manter a voz firme. — Cada um tem o seu papel. Eu cozinho, tu ajudas a arrumar. O Tiago trabalha muito, precisa de descanso.
Ela largou os pratos na bancada com força suficiente para me fazer estremecer. — E eu não trabalho? Também tenho o meu emprego! E mesmo assim sou eu que lavo a loiça, limpo o chão e ainda ouço queixas porque não faço como a senhora gosta!
O silêncio caiu pesado. Senti um nó na garganta. Lembrei-me da minha sogra, a dona Amélia, que me ensinara desde cedo: “Nora que quer ser filha nunca será bem-vinda.” Sempre temi tornar-me nela, mas ali estava eu, repetindo as mesmas palavras, os mesmos gestos.
A Mariana virou-se para o Tiago, esperando apoio. Ele levantou os olhos do telemóvel, hesitante.
— Mãe… talvez a Mariana tenha razão. Podíamos dividir melhor as tarefas.
Senti uma pontada no peito. O meu filho, o meu menino, agora homem feito, a tomar partido dela. Doeu mais do que eu queria admitir.
— Então é isso? — perguntei, a voz embargada. — Agora sou eu que estou errada por querer manter a ordem nesta casa?
O António pousou o jornal devagar. — Leonor, não compliques…
Levantei-me de rompante. — Não compliques? António, tu nunca te metes em nada! Sempre fui eu a segurar esta família! — As lágrimas ameaçavam cair, mas recusei-me a mostrar fraqueza.
Mariana suspirou fundo. — Eu só quero respeito. Não quero ser tratada como empregada.
Saí da cozinha antes que me vissem chorar. Fechei-me no quarto e sentei-me na beira da cama. O espelho devolveu-me uma imagem cansada: cabelos grisalhos presos num coque apressado, olheiras fundas de noites mal dormidas. Quando foi que envelheci tanto?
Lembrei-me dos tempos em que era eu a nora nova nesta casa. A dona Amélia era dura comigo, mas dizia que era para meu bem. “Aqui manda quem pode, obedece quem tem juízo.” Aguentei calada durante anos, convencida de que um dia seria diferente comigo. Que eu seria uma sogra compreensiva.
Mas agora via-me presa num ciclo sem fim. Mariana era diferente: estudada, independente, cheia de ideias modernas sobre igualdade e respeito mútuo. Não aceitava ordens caladas nem fazia fretes para agradar.
Na manhã seguinte, acordei cedo como sempre. Preparei café e torradas para todos. Mariana entrou na cozinha de robe azul-claro e cabelo molhado.
— Bom dia — disse ela, num tom neutro.
— Bom dia — respondi, sem olhar para ela.
Sentou-se à mesa e ficou a mexer no telemóvel. O silêncio era cortante.
O Tiago apareceu logo depois e beijou-me na testa. — Mãe, precisamos conversar.
Sentei-me à frente dele, coração apertado.
— A Mariana e eu… estamos a pensar procurar casa para nós. Achamos que está na altura de termos o nosso espaço.
O chão fugiu-me dos pés. — Vais deixar-nos? Depois de tudo o que fiz por ti?
Ele pegou-me nas mãos. — Mãe, não é por mal… Só queremos paz. Aqui está sempre tudo tenso.
Olhei para Mariana. Os olhos dela estavam marejados de lágrimas contidas.
— Eu nunca quis separar ninguém — murmurou ela. — Só queria sentir-me parte da família.
O António entrou na cozinha nesse momento e percebeu logo o ambiente pesado.
— O que se passa?
Expliquei-lhe entre soluços. Ele ficou calado durante um longo minuto antes de dizer:
— Talvez seja mesmo melhor assim…
Senti-me traída por todos. Passei o dia inteiro num torpor, arrumando gavetas já arrumadas, limpando o pó onde não havia pó nenhum. À noite, ouvi-os no quarto deles a discutir baixinho:
— Não aguento mais isto! — dizia Mariana.
— É só até encontrarmos casa…
— E se nunca for suficiente? E se nunca me aceitar?
As palavras dela ecoaram dentro de mim como um grito antigo: “E se nunca me aceitaram?” Eu própria já as tinha pensado tantas vezes quando era mais nova.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões: sobre quem lavava a roupa, quem fazia compras, quem ficava com o comando da televisão ao jantar. Tudo parecia motivo para conflito.
Uma tarde, enquanto estendia roupa no quintal, ouvi passos atrás de mim. Era Mariana.
— Posso ajudar? — perguntou ela timidamente.
Assenti com a cabeça. Ficámos as duas em silêncio durante algum tempo, cada uma pendurando as suas peças na corda.
— Sabe… — começou ela — às vezes sinto que nunca vou ser suficiente para si.
Olhei-a nos olhos pela primeira vez em dias. Vi ali uma rapariga assustada, tão perdida quanto eu estivera um dia.
— Não é fácil para mim — confessei baixinho. — Sempre fiz tudo pela família… Tenho medo de perder o meu lugar.
Ela sorriu tristemente. — Eu também só quero ter um lugar aqui.
Nesse momento percebi: não era só ela que não pertencia; eu também já não sabia onde pertencia nesta nova família em mudança.
Na semana seguinte encontraram um pequeno apartamento perto do centro de Lisboa. No dia da mudança ajudei-os a empacotar as coisas do quarto deles: livros dela de psicologia, camisas dele ainda cheirando ao meu amaciador preferido.
Quando fecharam a porta pela última vez senti um vazio imenso dentro de mim. O António tentou consolar-me:
— Eles precisam crescer sozinhos…
Mas eu sabia que algo se tinha partido para sempre naquela casa de dois quartos e uma cozinha.
Agora passo os dias entre memórias e silêncios. Às vezes pergunto-me se poderia ter feito diferente; se teria sido possível quebrar o ciclo das sogras e noras em guerra eterna.
Será que alguma vez aprendemos mesmo a ouvir quem chega com ideias novas? Ou estamos todos condenados a repetir os erros dos nossos pais?