Noite em Claro: O Preço Invisível do Meu Sacrifício

— Vais sair outra vez agora? — A voz da Ana ecoou pela cozinha, carregada de cansaço e de uma mágoa que já não tentava esconder.

Eu estava a calçar as botas, tentando ignorar o olhar dela. O relógio marcava 21h15. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, mas eu mal tinha tocado no prato. O Miguel já dormia, e a Leonor brincava sozinha na sala, desenhando qualquer coisa que eu nunca teria tempo de ver.

— Tenho de ir, Ana. Sabes que não posso faltar — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar.

Ela suspirou, cruzando os braços. — Sempre a mesma coisa. E eu? E as crianças? Achas que isto é vida?

Fiquei em silêncio. Não havia resposta certa. Desde que comecei a trabalhar no turno da noite na fábrica de embalagens em Vila Franca, a nossa vida virou do avesso. Antes, era eu quem levava o Miguel à escola e ajudava a Leonor com os trabalhos de casa. Agora, era um fantasma na minha própria casa.

A minha mãe sempre dizia: “Filho, fazes tudo pela família.” Lembro-me dela chegar a casa às duas da manhã, os olhos vermelhos do cansaço, mas sempre com um sorriso para mim. Eu queria ser como ela. Queria dar tudo aos meus filhos. Mas ninguém me avisou do preço.

— Não é por querer — tentei explicar. — O dinheiro não chega, Ana. O supermercado aumentou tudo outra vez. Se não fosse este turno extra, não pagávamos a renda este mês.

Ela virou-me as costas, limpando uma lágrima disfarçada. — E eu? Também trabalho o dia todo e ainda cuido deles sozinha. Quando é que isto acaba?

A porta fechou-se atrás de mim com um estrondo surdo. O ar da noite era frio e húmido. Caminhei até ao carro velho do meu pai, sentindo o peso do mundo nos ombros.

No caminho para a fábrica, os meus pensamentos rodopiavam como as luzes dos semáforos na EN10. Lembrei-me da infância em Almada, dos dias em que a minha mãe me deixava com a vizinha Dona Rosa porque tinha de ir limpar escritórios até de madrugada. Eu prometi a mim mesmo que os meus filhos nunca passariam por isso.

Mas agora era eu quem desaparecia à noite.

Na fábrica, o cheiro a plástico quente misturava-se com o aroma do café barato da máquina automática. O António, colega de turno e amigo de infância, bateu-me no ombro.

— Estás com cara de quem levou tareia — brincou ele, tentando aliviar o ambiente.

Sorri sem vontade. — A Ana está farta disto tudo. Diz que não aguenta mais.

Ele assentiu com um olhar compreensivo. — A minha Maria também já ameaçou ir-se embora duas vezes. Isto dos turnos mata qualquer casamento.

As horas arrastaram-se entre barulhos de máquinas e conversas sussurradas sobre contas por pagar e filhos doentes. Às três da manhã, sentei-me no vestiário e olhei para o telemóvel: uma mensagem da Ana, enviada à meia-noite.

“Desculpa ter sido dura contigo. Só estou cansada.”

Senti um aperto no peito. Queria responder-lhe algo bonito, mas as palavras fugiam-me sempre quando mais precisava delas.

Quando cheguei a casa, já passava das sete. O sol nascia devagarinho por trás dos telhados da urbanização. Entrei em silêncio para não acordar ninguém. No quarto das crianças, vi o Miguel enroscado ao urso de peluche e a Leonor com os cabelos espalhados pela almofada.

No nosso quarto, Ana dormia de lado, o rosto sereno apesar das olheiras fundas. Sentei-me na beira da cama e fiquei ali a olhar para ela, perguntando-me se algum dia voltaria a ser como antes.

Os dias passaram assim: eu a dormir de manhã enquanto Ana saía para o trabalho; ela a chegar exausta quando eu já estava a preparar-me para sair outra vez. Os nossos encontros resumiam-se a bilhetes deixados na mesa da cozinha ou mensagens apressadas no WhatsApp.

Uma noite, ao jantar, tentei quebrar o gelo.

— Estive a pensar… talvez devêssemos pedir ajuda à tua mãe para ficar com as crianças um fim-de-semana destes. Podíamos ir dar uma volta só os dois.

Ana olhou para mim como se eu tivesse sugerido uma viagem à lua.

— Achas mesmo que isso resolve alguma coisa? Não é só disso que precisamos…

— Então diz-me tu! — explodi sem querer. — Diz-me o que queres que eu faça! Queres que deixe o trabalho? Que fiquemos sem dinheiro?

Ela ficou em silêncio, mordendo o lábio inferior até quase sangrar.

— Eu só queria ter-te aqui… — murmurou por fim.

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante todo o turno dessa noite. Entre empilhar caixas e verificar máquinas, dei por mim a pensar se valia mesmo a pena sacrificar tudo pelo dinheiro. E se estivesse a perder aquilo que mais importava?

Na semana seguinte, o Miguel ficou doente com febre alta. Ana teve de faltar ao trabalho para ficar com ele porque eu não podia trocar o turno. Quando cheguei a casa naquela manhã, encontrei-a sentada no chão do quarto das crianças, abraçada ao Miguel e a chorar baixinho.

— Desculpa… — sussurrei, ajoelhando-me ao lado dela.

Ela encostou-se ao meu ombro e chorou ainda mais alto.

— Não aguento isto sozinha…

Nesse momento percebi que não era só ela quem precisava de mim; eu também precisava dela. Precisávamos um do outro para sobreviver à tempestade.

Falei com o chefe na fábrica e pedi para reduzir os turnos noturnos. O salário ia baixar ainda mais, mas talvez conseguíssemos encontrar um equilíbrio.

Os meses seguintes foram duros. Tivemos de cortar em tudo: deixámos de ir jantar fora, vendemos o carro do meu pai e comecei a fazer biscates aos fins-de-semana para compensar um pouco do dinheiro perdido.

Mas aos poucos voltámos a encontrar-nos: jantávamos juntos à mesa da cozinha; levava as crianças ao parque ao domingo; Ana voltou a sorrir quando me via chegar a casa.

Ainda hoje não sei se fizemos as escolhas certas. Às vezes olho para os meus filhos e pergunto-me se vão lembrar-se do pai ausente ou do pai presente nos pequenos momentos que conseguimos salvar.

E vocês? Acham que vale mais sacrificar tudo pelo dinheiro ou arriscar perder aquilo que realmente importa? Será que algum dia alguém vê mesmo o nosso sacrifício?