Noite em Claro e o Cheiro do Café Queimado: Entre a Saudade e o Perdão
— Não me olhes assim, Leonor. Eu já disse que não foi nada! — A voz do Rui ecoa ainda na minha cabeça, mesmo depois de três anos desde aquela noite. Estou de pé na cozinha, às três da manhã, mexendo distraidamente uma panela de arroz que não vai ser comido. O silêncio da casa é cortado apenas pelo tique-taque do relógio e pelo som abafado das minhas lágrimas caindo na bancada.
Quando conheci o Rui, ele era tudo o que eu achava que precisava: educado, atencioso, com aquele sorriso de quem sabe ouvir. Lembro-me da primeira vez que fomos ao Miradouro de Santa Catarina, ele a segurar-me a mão com força, prometendo mundos e fundos. “Contigo, Leonor, sinto que posso ser eu próprio”, dizia-me. Como é que alguém muda tanto?
A minha mãe sempre me avisou: “As pessoas mostram-se como querem ser vistas. Só com o tempo é que vês quem são.” Mas eu, teimosa como sempre fui, ignorei. Casei-me com o Rui numa tarde de junho, com os jacarandás em flor e a família toda a sorrir para as fotografias. O meu pai chorou ao entregar-me ao altar. “Cuida dela”, pediu ao Rui. Ele sorriu e prometeu.
Os primeiros anos foram bons, não posso negar. Pequenos-almoços na varanda, risos partilhados ao domingo à tarde, discussões sobre quem fazia o melhor arroz de pato. Mas depois veio o trabalho novo do Rui, as viagens constantes, as mensagens respondidas a correr. E eu ali, sozinha em casa, a inventar desculpas para justificar as ausências dele.
Foi numa dessas noites solitárias que encontrei a primeira mensagem estranha no telemóvel dele. “Adorei ontem”, dizia uma tal de Patrícia. O meu coração gelou. Confrontei-o logo que chegou a casa.
— Rui, quem é a Patrícia?
Ele riu-se, como se fosse uma criança apanhada a roubar bolachas.
— É só uma colega do trabalho, Leonor. Não inventes coisas.
Mas eu sabia. O olhar dele já não era o mesmo. A partir daí, tudo mudou. Vieram as discussões baixinho para não acordar o nosso filho, Tomás. Vieram as noites em claro, os jantares frios à espera de alguém que já não queria voltar.
A minha irmã Inês dizia-me para sair dali. “Não tens de aguentar isso só porque tens um filho!” Mas eu tinha medo. Medo de ficar sozinha, medo do que os outros iam dizer, medo de não conseguir recomeçar.
Lembro-me da noite em que tudo acabou. O Rui chegou tarde, com cheiro a perfume barato e batom na camisa.
— Não me olhes assim, Leonor. Eu já disse que não foi nada!
— Não foi nada? Achas que sou parva? — gritei-lhe, sentindo o peito apertado.
O Tomás apareceu à porta da cozinha, olhos grandes de susto.
— Mãe? Está tudo bem?
Naquele momento percebi: não podia continuar ali. Por mim e pelo meu filho.
O divórcio foi um inferno. O Rui tentou convencer-me a ficar, depois ameaçou levar o Tomás. A minha mãe ficou do meu lado, mas o meu pai achava que devia tentar perdoar. “O casamento é para a vida toda”, dizia ele.
Passei noites sem dormir, a ouvir os vizinhos cochicharem no prédio antigo de Campo de Ourique. “Coitada da Leonor…” “Ele sempre foi tão simpático…”
O Tomás chorava muito no início. Sentia falta do pai e perguntava-me se ele ia voltar para casa. Eu mentia-lhe: “O pai está a trabalhar muito.” Até ao dia em que ele me perguntou:
— Mãe, tu ainda gostas do pai?
Não soube responder-lhe.
Agora estou aqui, sozinha na cozinha, a mexer arroz queimado e a pensar em tudo isto. O cheiro forte do café invade o ar — deixei-o ferver demais outra vez. Sento-me à mesa com uma chávena nas mãos e olho para as fotografias antigas na parede: eu e o Rui no Douro, o Tomás bebé no colo dele.
A Inês liga-me quase todas as noites.
— Vais ficar bem, mana. És mais forte do que pensas.
Mas será? Às vezes sinto-me tão pequena neste apartamento vazio…
No trabalho dizem que estou diferente. A Ana do departamento financeiro trouxe-me um bolo caseiro outro dia.
— Tens de te mimar mais, Leonor! — sorriu ela.
Mas mimar-me parece impossível quando tudo me dói cá dentro.
O Tomás adaptou-se melhor do que eu esperava. Agora tem nove anos e já faz perguntas difíceis:
— Porque é que tu e o pai não conseguem ser amigos?
Tento explicar-lhe sem falar mal do Rui. Não quero que ele cresça a odiar o pai. Mas às vezes apetece-me gritar: “Porque ele destruiu tudo!”
A minha mãe ajuda-me muito com o Tomás. Vem buscá-lo à escola quando eu tenho reuniões até tarde e faz sopa de legumes como ninguém.
— Tens de perdoar para seguires em frente — diz ela enquanto corta cenouras.
Mas como se perdoa uma traição? Como se esquece o olhar vazio de quem já não nos ama?
O Rui liga de vez em quando para falar com o Tomás. Às vezes pede para falar comigo também.
— Leonor… desculpa por tudo.
Fico calada. Não sei se algum dia vou conseguir perdoá-lo verdadeiramente.
Esta noite, enquanto mexo arroz queimado e deixo o café ferver até quase transbordar, penso em tudo o que perdi — mas também no que ganhei: liberdade, dignidade, a possibilidade de me reencontrar.
Será que algum dia vou voltar a confiar em alguém? Será possível reconstruir-me depois de tanto ter sido destruída?
E vocês? Já sentiram este vazio depois de perderem alguém? Como é que se aprende a perdoar sem esquecer quem somos?