Noite em Branco e Panelas ao Fogo: Entre o Passado e o Presente

— Não me olhes assim, Mariana. Não fui eu quem começou esta discussão! — a voz do António ainda ecoa na minha cabeça, mesmo agora, às três da manhã, enquanto mexo o arroz na panela. O lume baixo ilumina a cozinha com uma luz trémula e amarela, e o cheiro da cebola frita mistura-se com a amargura que me corrói por dentro.

Não consigo dormir. Desde que o António saiu de casa — ou melhor, desde que o expulsei — as noites tornaram-se longas e inquietas. O silêncio pesa mais do que qualquer grito que já trocámos. Sinto-me como uma sombra a vaguear pela casa, perdida entre o passado e o presente.

Lembro-me do início, quando tudo parecia perfeito. O António era encantador, sempre com um sorriso pronto e palavras doces. Os meus pais diziam: “Finalmente, Mariana, encontraste alguém que te merece.” Eu acreditava nisso. Como podia não acreditar? Ele fazia-me sentir especial, única. Lembro-me do nosso casamento na igreja de São Domingos, as lágrimas da minha mãe, o orgulho do meu pai. E eu, de branco, a prometer amor eterno sem imaginar que o eterno podia ser tão curto.

Mas as promessas quebram-se com o tempo. Primeiro vieram as ausências: reuniões de trabalho que se prolongavam até tarde, viagens inesperadas para o Porto ou para Madrid. Depois, os silêncios. O António já não me olhava nos olhos à mesa do jantar. Eu perguntava-lhe como tinha corrido o dia e ele respondia com monossílabos, sempre agarrado ao telemóvel.

Foi numa dessas noites solitárias que descobri a mensagem. “Saudades tuas… Quando voltas?” O nome era Ana Rita. Uma colega do escritório, dizia ele. Mas ninguém manda mensagens assim a uma simples colega. Senti o chão fugir-me dos pés. Confrontei-o:

— António, quem é a Ana Rita?

Ele riu-se, nervoso:

— Mariana, estás a ser ridícula! É só uma colega!

Mas eu sabia. As mulheres sabem sempre.

A partir daí, tudo desmoronou. Vieram as discussões, os gritos abafados para não acordar o nosso filho, o Miguel. Ele tinha apenas oito anos e já percebia mais do que devia.

— Mãe, porque é que tu e o pai estão sempre chateados?

Como explicar a uma criança que o amor dos pais se transformou em desconfiança e mágoa?

O arroz começa a pegar ao fundo da panela. Desligo o lume e sento-me à mesa da cozinha, a cabeça entre as mãos. Sinto-me exausta. Oiço os ponteiros do relógio da sala a marcar cada segundo desta noite interminável.

A minha irmã Inês diz-me para seguir em frente:

— Mariana, ele não te merece! Tens de pensar em ti e no Miguel.

Mas como se faz isso? Como se apagam anos de vida partilhada? Como se aprende a dormir sozinha numa cama onde antes cabiam sonhos a dois?

O António tentou voltar. Apareceu cá em casa há duas semanas, com um ramo de flores murchas e olhos vermelhos:

— Perdoa-me, Mariana. Fui um idiota.

Eu queria gritar-lhe tudo o que me magoou, mas só consegui chorar em silêncio. Ele ajoelhou-se à minha frente:

— Dá-me outra oportunidade…

Mas eu sabia que não podia voltar atrás. Não depois de tudo.

O Miguel sente falta do pai. Vejo-o olhar para a porta sempre que ouve passos no corredor do prédio.

— Achas que o pai vai voltar para casa?

O meu coração parte-se um pouco mais cada vez que lhe digo:

— O pai vai estar sempre contigo, mesmo que não viva aqui.

Às vezes penso se fiz bem. Se devia ter lutado mais pelo nosso casamento. Mas depois lembro-me das mentiras, das noites vazias, dos olhares desviados à mesa do pequeno-almoço.

A minha mãe diz-me para ser forte:

— Mariana, pensa no Miguel. Ele precisa de uma mãe feliz.

Mas como ser feliz quando tudo à minha volta me lembra do que perdi? Até cozinhar arroz se tornou um acto de resistência contra a tristeza.

O telefone vibra em cima da bancada. Uma mensagem da Inês: “Estás acordada? Precisas de falar?”

Respondo apenas: “Estou bem.” Não quero preocupar ninguém. Não quero ser um fardo.

Levanto-me e vou ao quarto do Miguel. Ele dorme profundamente, abraçado ao urso de peluche que o António lhe trouxe de Sevilha no último aniversário. Sento-me na beira da cama e passo-lhe a mão pelo cabelo despenteado.

— Amo-te tanto, filho…

Ele murmura algo no sono e sorri levemente. Pergunto-me se sonha com dias felizes em família, ou se já sente falta do pai todas as noites como eu sinto falta de tudo aquilo que pensei ter.

Volto à cozinha e olho para o arroz frio na panela. Penso em todas as mulheres que passam por isto — noites em branco, corações partidos, filhos no meio da tempestade. Penso na Ana Rita e pergunto-me se ela sabe realmente quem é o António ou se também foi enganada pelo seu charme inicial.

Oiço passos no andar de cima — os vizinhos também não dormem bem ultimamente; ouvi dizer que estão à beira do divórcio. Parece que ninguém escapa às dores do amor moderno.

Sento-me novamente à mesa e olho para as minhas mãos — mãos que já seguraram as dele com tanta esperança e agora só encontram consolo numa chávena de chá morno.

Será possível recomeçar depois de tanta desilusão? Ou estamos todos condenados a repetir os mesmos erros?

Talvez amanhã consiga dormir melhor. Talvez amanhã consiga sorrir sem fingir.

E vocês? Já sentiram esta solidão no meio da noite? Como encontram forças para continuar quando tudo parece perdido?