No silêncio da madrugada, com uma mala e os meus filhos: o recomeço da minha vida
— Mãe, para onde vamos? — sussurrou a Mariana, agarrada à minha mão com tanta força que quase me cortava a circulação. O Pedro, mais novo, dormia no meu colo, alheio ao medo que me gelava o sangue. O relógio da sala marcava três da manhã quando fechei a porta de casa pela última vez. O silêncio era tão pesado que parecia gritar.
Nunca pensei que a minha vida fosse resumir-se a isto: fugir no escuro, com uma mala pequena e dois filhos assustados. Cresci em Vila Nova de Gaia, numa família onde as discussões eram abafadas pelas paredes grossas e os segredos varriam-se para debaixo do tapete. O meu pai era um homem duro, mas nunca imaginei que um dia teria de fugir de alguém que eu própria escolhi para ser o pai dos meus filhos.
O António era encantador quando nos conhecemos. Trabalhava numa oficina e tinha aquele sorriso maroto que me fazia esquecer os problemas. Casámo-nos cedo demais, talvez porque eu queria sair de casa, talvez porque queria acreditar que o amor podia tudo. Mas o amor não resiste a tudo. Não resiste ao álcool, à raiva, à frustração de quem vê os sonhos morrerem devagarinho.
A primeira vez que ele me bateu foi porque cheguei tarde do trabalho. “És uma inútil! Não sabes cuidar dos teus filhos nem da tua casa!” — gritou ele, enquanto eu tentava proteger a barriga onde a Mariana crescia. Jurei a mim mesma que seria a última vez. Mas nunca é só uma vez. As desculpas vieram sempre acompanhadas de flores murchas e promessas vazias.
A minha mãe dizia-me para ter paciência. “Os homens são assim, filha. Tens de saber lidar com eles.” O meu pai nem sequer falava do assunto. Os vizinhos olhavam-me com pena, mas ninguém se atrevia a meter-se. Em Portugal, ainda se acredita que o que acontece dentro de casa não é da conta de ninguém.
Naquela noite, depois de mais uma discussão — desta vez porque o Pedro chorou demais — percebi que se ficasse ali mais um dia, não sobreviveria. Esperei que ele adormecesse no sofá, embriagado, e comecei a arrumar as poucas coisas que podia levar: roupas dos miúdos, documentos, algum dinheiro escondido na caixa das bolachas.
— Mãe, tenho medo — repetiu a Mariana.
— Eu também tenho, filha. Mas agora vamos ser corajosas juntas.
Saímos para a rua deserta. O frio cortava-me a cara e as lágrimas ardiam-me nos olhos. Liguei à minha irmã, a única pessoa em quem ainda confiava.
— Marta? Preciso de ajuda. Estou na rua com os miúdos.
Ela hesitou antes de responder:
— Não sei se posso meter-te cá em casa… O Paulo não vai gostar.
O Paulo era o marido dela, sempre desconfiado, sempre preocupado com o que os outros iam dizer. Mas não tinha alternativa. Caminhei até à paragem do autocarro com as crianças e esperei pelo primeiro da manhã. Cada minuto parecia uma eternidade.
Quando finalmente chegámos à casa da Marta, ela abriu-nos a porta em silêncio. Os olhos dela diziam tudo: medo, vergonha, compaixão. Dormimos todos juntos no sofá-cama da sala. No dia seguinte, o Paulo fez questão de me lembrar que aquilo era temporário.
— Não quero problemas cá em casa — disse ele à mesa do pequeno-almoço, sem olhar para mim.
A Marta tentou defender-me:
— Ela não tem para onde ir!
— Isso não é problema meu — respondeu ele seco.
Procurei ajuda no centro social da freguesia. A assistente social olhou-me como se eu fosse mais um caso perdido.
— Tem família? — perguntou ela.
— Só a minha irmã. Mas não posso ficar lá muito tempo.
— E trabalho?
— Fui despedida há dois meses… O António não queria que eu trabalhasse.
Ela suspirou e passou-me uma lista de abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica. Liguei para todos; só havia vaga num lar em Matosinhos. Fui para lá com os miúdos no dia seguinte.
O abrigo era frio e impessoal. As outras mulheres olhavam-me com desconfiança ou indiferença. Cada uma tinha a sua história de dor e sobrevivência. Havia noites em que chorava baixinho para não acordar as crianças. Sentia-me sozinha como nunca antes.
A Mariana começou a fazer xixi na cama outra vez. O Pedro chorava por tudo e por nada. Eu tentava ser forte por eles, mas às vezes só queria desaparecer.
Os meses passaram devagar. Consegui um trabalho como empregada de limpeza numa escola primária. O salário mal dava para pagar um quarto alugado quando finalmente saímos do abrigo. A Marta vinha visitar-nos às escondidas do Paulo e trazia roupa usada dos filhos dela.
O António apareceu algumas vezes à porta da escola onde eu trabalhava. Gritava insultos, ameaçava levar-me os miúdos. Tive de pedir uma ordem de restrição. A polícia dizia sempre o mesmo:
— Sabe como é… Estas coisas demoram tempo nos tribunais.
A solidão era esmagadora. Os meus pais recusaram-se a falar comigo durante meses. “Desgraçaste a família”, disse-me o meu pai ao telefone antes de desligar na minha cara.
Mas havia pequenos milagres: o sorriso da Mariana quando tirou um Muito Bom na escola; o Pedro a aprender a andar de bicicleta sem rodinhas; as tardes em que fazíamos bolos só para sentir o cheiro doce espalhar-se pela casa minúscula.
Um dia, ao sair do trabalho, encontrei um envelope colado à porta: uma carta do António ameaçando tirar-me os filhos se não voltasse para ele. Fiquei paralisada de medo durante horas. Liguei à polícia outra vez; disseram-me para ter calma.
Nessa noite quase não dormi. Senti-me derrotada, fraca, incapaz de proteger quem mais amava. Mas quando vi os meus filhos dormir abraçados no colchão velho, percebi que não podia desistir.
Comecei a estudar à noite para tirar o 12º ano completo. A diretora da escola onde trabalhava ajudou-me com livros e explicações grátis. Aos poucos fui ganhando confiança em mim mesma outra vez.
Dois anos depois daquela fuga na madrugada, consegui emprego como auxiliar administrativa numa empresa pequena em Gaia. Aluguei um T2 modesto mas luminoso; pela primeira vez em anos senti que tinha um lar.
A Mariana já não faz xixi na cama e o Pedro pergunta todos os dias se pode convidar amigos para brincar lá em casa. A Marta separou-se do Paulo e diz que fui eu que lhe dei coragem para mudar de vida.
Os meus pais começaram a visitar-nos aos poucos; o meu pai nunca pediu desculpa mas trouxe um saco de laranjas do quintal dele na última visita — foi o mais perto de um pedido de perdão que alguma vez terei dele.
Hoje olho para trás e ainda sinto medo às vezes — medo de perder tudo outra vez, medo de não ser suficiente para os meus filhos. Mas também sinto orgulho: sobrevivi ao inferno e consegui construir uma vida nova do nada.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres continuam presas ao medo porque ninguém lhes estende a mão? Será que todas teriam tido forças para fugir naquela noite escura? E vocês… o que fariam se estivessem no meu lugar?