No Parque, Entre Gritos e Silêncios: O Dia em que Defendi a Minha Filha e Me Arrependi
— Leonor, larga já o baloiço! — gritei, a voz mais alta do que pretendia, ecoando pelo parque. Senti imediatamente os olhares dos outros pais cravarem-se em mim, mas naquele momento só conseguia ver a minha filha, de três anos, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto sujo de terra.
Tudo começou há poucos minutos. Era um daqueles fins de tarde dourados em Lisboa, o sol já baixo, as sombras longas no chão do parque infantil do bairro. Eu estava sentada no banco de madeira, a tentar responder a uns emails do trabalho no telemóvel, quando ouvi o choro da Leonor. Levantei-me num ápice, o coração disparado, e vi-a junto ao baloiço, agarrada à corrente com força, enquanto um miúdo mais velho — talvez uns cinco anos — tentava empurrá-la para fora.
— Sai daí! — berrava ele, com uma voz estridente e impaciente. — Já brincaste muito tempo!
A mãe do rapaz estava ao telefone, de costas para a cena. Olhei em volta à procura de apoio, mas ninguém parecia disposto a intervir. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era só pelo choro da Leonor; era por todas as vezes que me senti impotente perante injustiças pequenas e grandes.
Aproximei-me rapidamente e ajoelhei-me ao lado da minha filha.
— O que se passa aqui? — perguntei, tentando soar calma.
— Ele empurrou-me… — soluçou ela, agarrando-se ao meu braço.
Olhei para o rapazinho, que me fitava com um ar desafiante. — Não se empurra ninguém! — disse-lhe, num tom mais duro do que queria admitir.
Foi então que a mãe dele se virou finalmente.
— Desculpe? Está a falar com o meu filho assim porquê? — perguntou ela, franzindo o sobrolho.
Senti o sangue ferver-me nas veias. — O seu filho empurrou a minha filha! Ela só queria brincar como os outros!
Ela encolheu os ombros. — São crianças. Resolvem-se sozinhas.
— Não quando há empurrões! — respondi, já sem conseguir controlar o volume da voz.
Os outros pais começaram a olhar discretamente na nossa direção. Senti-me exposta, mas não consegui parar. A mãe do rapaz aproximou-se e puxou-o pelo braço.
— Anda daí, Tomás. Não temos de aturar gente malcriada.
Fiquei ali parada, com Leonor ainda a chorar baixinho no meu colo. O silêncio entre nós era pesado. Senti-me ridícula e derrotada. Tinha defendido a minha filha, sim, mas a que custo? O olhar assustado dela dizia-me que talvez tivesse feito pior.
No caminho para casa, Leonor ia calada. Costuma tagarelar sobre tudo o que vê — os cães na rua, as flores nos canteiros — mas naquele dia ficou muda. Tentei puxar conversa:
— Estás bem, filha?
Ela assentiu com a cabeça, sem me olhar nos olhos.
Em casa, enquanto lhe dava banho, reparei que tinha uma pequena nódoa negra no braço. O coração apertou-se-me de novo.
— Doeu muito? — perguntei baixinho.
Ela encolheu os ombros. — Só queria brincar mais um bocadinho…
Sentei-me no chão da casa de banho e chorei em silêncio enquanto ela brincava com os patinhos de borracha. Senti-me uma fracassada como mãe: não consegui protegê-la sem perder o controlo; não consegui ensinar-lhe como lidar com conflitos sem gritar; não consegui ser o exemplo de calma e força que sempre quis ser para ela.
À noite, quando o meu marido chegou do trabalho, contei-lhe o que se tinha passado. Ele ouviu em silêncio e depois disse:
— Fizeste o que qualquer mãe faria… Mas talvez tenhas deixado a emoção falar mais alto.
Fiquei irritada com ele por um instante. Era fácil falar quando não se está lá, quando não se sente o medo e a raiva misturados na garganta. Mas depois percebi que ele tinha razão.
Nos dias seguintes evitei passar pelo parque à mesma hora. Tinha vergonha de encontrar aquela mãe ou qualquer outro dos pais que assistiram à cena. Leonor também não pediu para ir ao parque durante uns tempos. Parecia ter perdido um pouco da alegria despreocupada que sempre teve.
Uma tarde, enquanto arrumava os brinquedos dela no quarto, encontrei um desenho: dois bonecos de mãos dadas junto ao baloiço. Um deles chorava; o outro tinha uma cara zangada. No canto inferior estava escrito “Leonor e mamã”.
Sentei-me na cama dela e fiquei a olhar para aquele desenho durante minutos. Percebi que ela tinha absorvido tudo: não só o empurrão do rapaz, mas também a minha explosão de raiva e vergonha pública.
Na semana seguinte decidi enfrentar o medo e voltar ao parque com ela. O sol brilhava como naquele dia fatídico. Leonor hesitou à entrada, mas eu segurei-lhe na mão com firmeza.
— Vamos juntas — disse-lhe baixinho.
Desta vez sentei-me mesmo ao lado do baloiço enquanto ela brincava. Quando outro menino se aproximou e pediu vez, Leonor olhou para mim com medo nos olhos. Sorri-lhe e incentivei-a:
— Podes brincar mais um bocadinho e depois trocas com ele, está bem?
Ela assentiu e, passado um minuto, saltou do baloiço e deixou o outro menino subir. Olhou para mim à espera de aprovação. Sorri-lhe e abri os braços para um abraço apertado.
No regresso a casa senti-me um pouco mais leve. Talvez não tenha sido perfeita naquele dia no parque; talvez tenha falhado como exemplo de autocontrolo. Mas também aprendi algo sobre mim mesma: sobre os meus limites e sobre como é difícil ser mãe num mundo onde todos parecem julgar cada gesto nosso.
Agora pergunto-me: será que fiz o certo ao defender a minha filha daquela forma? Ou será que lhe ensinei a responder à agressão com mais agressão? Como é que vocês reagem quando sentem que os vossos filhos estão em perigo? Gostava mesmo de saber: até onde iriam vocês para proteger quem mais amam?