No Fio da Navalha: Como o Nosso Cão Desfez a Nossa Família
— Não aguento mais, Mariana! Ou o Tobias ou eu! — gritei, sentindo a garganta arder e as mãos a tremerem de raiva e desespero. O eco da minha voz ainda pairava na sala quando ela largou a tigela de comida do cão no chão e me olhou como se eu fosse um estranho.
— Estás a falar a sério, Rui? Depois de tudo o que passámos juntos, vais pôr-me a escolher entre ti e o Tobias? — A voz dela era baixa, mas carregada de mágoa. Os olhos castanhos, outrora tão doces, estavam agora vermelhos, brilhantes de lágrimas contidas.
Nunca pensei chegar aqui. Quinze anos de casamento, duas filhas criadas com amor, noites em claro por causa das febres e das birras, férias adiadas para pagar contas, discussões sobre sogras e sogros, tudo parecia pequeno comparado com isto: um cão. Um maldito cão.
Quando a Mariana me falou pela primeira vez em adotar um animal, achei que era só mais uma das suas ideias passageiras. Mas ela insistiu. Disse que sempre sonhara em ter um cão, que era importante para ela, que as miúdas iam adorar. Eu cedi. Como sempre cedia às vontades dela, porque amava aquela mulher desde o liceu, porque queria vê-la feliz.
O Tobias chegou numa tarde de sábado, vindo de um canil em Setúbal. Era um rafeiro castanho, magro e assustado, com uns olhos enormes que pareciam pedir desculpa por existir. As miúdas ficaram histéricas de alegria. A Mariana chorou de emoção. Eu sorri para não destoar.
No início, tentei gostar dele. Juro que tentei. Levava-o à rua, dava-lhe festas na cabeça, comprava-lhe brinquedos. Mas o Tobias era destruidor. Roía tudo: sapatos, móveis, até os livros da estante. Ladrava durante a noite, fazia necessidades no tapete da sala. As miúdas fartaram-se depressa da novidade e voltaram aos tablets e aos telemóveis. Sobrou para mim e para a Mariana.
A paciência dela parecia infinita. Passava horas a limpar, a ensinar comandos ao cão, a ver vídeos no YouTube sobre adestramento. Eu via-a cada vez mais distante de mim e mais próxima daquele animal. À noite, quando me deitava ao lado dela, sentia o cheiro do Tobias entranhado nos lençóis e dava por mim a desejar que tudo voltasse ao normal.
As discussões começaram por coisas pequenas: quem levava o cão à rua, quem limpava os cocós do quintal, quem pagava as contas do veterinário. Depois vieram as acusações: que eu não tinha paciência, que não sabia ceder, que era egoísta. Eu respondia que ela só pensava no cão, que se esquecia de mim e das filhas.
Uma noite, depois de uma discussão especialmente feia — lembro-me de ter atirado uma almofada ao chão — fui dormir para o sofá. O Tobias veio atrás de mim e deitou-se aos meus pés. Olhei para ele e senti uma raiva surda. Não era culpa dele, eu sabia. Mas naquele momento odiei-o com todas as minhas forças.
As semanas passaram e a tensão aumentou. As miúdas começaram a evitar estar em casa. A mais velha passou a dormir na casa da avó quase todos os fins de semana. A Mariana fechava-se no quarto com o Tobias ao colo e eu sentia-me cada vez mais sozinho na minha própria casa.
Até que hoje explodi. Cheguei do trabalho cansado, encontrei o tapete da sala destruído e o cheiro a urina entranhado nas paredes. A Mariana estava sentada no chão a limpar tudo com lágrimas nos olhos e o Tobias a lamber-lhe as mãos.
— Isto não é vida! — gritei. — Não posso continuar assim! Ou ele ou eu!
O silêncio caiu pesado entre nós. O Tobias abanou o rabo, alheio ao drama humano à sua volta.
— Rui… — sussurrou ela — Eu amo-te. Mas também amo o Tobias. Ele não tem culpa de nada…
— E eu? Eu tenho culpa? — perguntei, sentindo-me ridículo por estar com ciúmes de um cão.
Ela não respondeu. Levantou-se devagar, pegou no Tobias ao colo e subiu as escadas sem olhar para trás.
Fiquei ali parado na sala vazia, rodeado pelos destroços da nossa vida: brinquedos espalhados, móveis arranhados, fotografias antigas nas paredes onde ainda sorríamos juntos.
Naquela noite dormi sozinho outra vez. O silêncio era ensurdecedor. Pensei em tudo o que tínhamos construído juntos e em como um simples animal podia abalar tanto uma relação.
No dia seguinte tentei falar com ela. Disse-lhe que talvez devêssemos procurar ajuda, ir a uma terapia de casal. Ela acenou com a cabeça mas percebi logo que não acreditava nisso.
Os dias foram passando e fomos vivendo como dois estranhos sob o mesmo teto. As miúdas evitavam-nos cada vez mais. O Tobias continuava a ser o centro do mundo da Mariana.
Até que numa manhã encontrei uma mala feita junto à porta. A Mariana estava sentada no sofá com as miúdas ao lado e o Tobias aos pés.
— Vou para casa da minha mãe uns tempos — disse ela sem me olhar nos olhos. — Preciso pensar.
Tentei argumentar, implorar até, mas percebi que já não havia nada a fazer.
Agora estou aqui nesta casa vazia, rodeado pelo silêncio e pelas memórias do que fomos. Pergunto-me se fui injusto ou se apenas quis salvar aquilo que restava de mim próprio.
Será possível um animal destruir uma família? Ou será que apenas revelou aquilo que já estava partido há muito tempo?
E vocês? Já sentiram que algo aparentemente pequeno foi suficiente para abalar tudo aquilo em que acreditavam?