No Espelho Partido: A Luta Invisível pela Autoestima das Mulheres

— Não percebes mesmo nada, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto as lágrimas me escorriam pelo rosto. O eco do meu desespero ressoou pela casa, e por um instante, o silêncio foi tão pesado que quase me sufocou.

A minha mãe, a Dona Teresa, olhou-me com aquele olhar duro, típico das mulheres da nossa família. — Inês, não é assim que se fala a uma mãe. Só quero o teu bem. — Mas eu já não conseguia ouvir. As paredes da nossa casa em Almada pareciam fechar-se sobre mim, cada azulejo testemunha de discussões antigas, de sonhos desfeitos.

Desde criança, sempre me disseram que eu era diferente. “A Inês é sensível demais”, diziam as tias ao domingo, enquanto eu fingia não ouvir. O meu pai, o senhor António, raramente falava comigo sobre sentimentos. “A vida é dura, filha. Não te iludas.” Cresci a tentar ser forte, mas a verdade é que me sentia invisível.

Na escola, nunca fui a mais bonita nem a mais popular. A minha melhor amiga, Mariana, era tudo o que eu não era: extrovertida, confiante, sempre rodeada de gente. Eu era a sombra dela. Lembro-me de um dia em que ela me disse:

— Inês, tens de te impor mais! Senão ninguém te leva a sério.

Mas como é que se impõe alguém que não acredita em si própria?

O tempo passou e as inseguranças cresceram comigo. Aos 18 anos, entrei na Faculdade de Letras em Lisboa. Pensei que ali poderia reinventar-me. Mas logo percebi que as comparações não tinham ficado para trás. As raparigas pareciam todas saídas de revistas: cabelos lisos e brilhantes, roupas de marca, sorrisos perfeitos. Eu sentia-me deslocada, como se usasse sempre um vestido emprestado.

Foi aí que conheci a Patrícia e a Sofia. A Patrícia era filha de um advogado famoso do Porto; falava alto e ria ainda mais alto. Sofia vinha de uma família humilde de Setúbal, mas tinha uma força nos olhos que me intimidava. Juntas formámos um trio improvável.

Numa noite fria de novembro, sentámo-nos num café perto do Cais do Sodré. A conversa começou leve, mas rapidamente mergulhámos nas nossas dores.

— Sabem — começou a Patrícia — às vezes sinto que nunca vou ser suficiente para os meus pais. Eles esperam tanto de mim… — A voz dela tremeu.

Sofia suspirou. — Eu só queria poder ajudar a minha mãe sem sentir vergonha da nossa vida.

Olhei para elas e percebi que não estava sozinha na minha luta. Mas isso não tornava as coisas mais fáceis.

Os anos passaram e cada uma seguiu o seu caminho. A Patrícia tornou-se advogada como o pai, mas perdeu-se numa relação tóxica com um colega do escritório. Sofia foi trabalhar para uma loja de roupa e engravidou cedo demais; o namorado desapareceu assim que soube da notícia.

Eu? Fiquei presa entre empregos precários e sonhos adiados. A minha mãe nunca perdeu uma oportunidade para me lembrar:

— Quando é que arranjas um trabalho a sério? E um namorado decente?

As palavras dela eram facas afiadas. Cada vez que tentava explicar-lhe que queria escrever, ela revirava os olhos.

— Escrever? Isso não paga contas!

Comecei a evitar os jantares de família. As perguntas dos tios eram sempre as mesmas: “Já tens alguém?” “Quando casas?” “E filhos?” Sorria e respondia com evasivas, mas por dentro sentia-me cada vez mais pequena.

Uma noite, depois de mais uma discussão com a minha mãe sobre o futuro, tranquei-me no quarto e olhei-me ao espelho. Vi uma mulher cansada, com olheiras fundas e os ombros caídos. Senti raiva de mim própria por não conseguir ser como as outras.

Foi então que recebi uma mensagem da Mariana:

— Preciso falar contigo. Urgente.

Fui ter com ela ao miradouro de Santa Catarina. Estava sentada no muro, a fumar um cigarro com as mãos trémulas.

— O que se passa? — perguntei.

Ela hesitou antes de responder:

— O meu namorado bateu-me ontem à noite.

O choque foi tão grande que fiquei sem palavras. Mariana sempre parecera tão forte… Abracei-a e senti o corpo dela tremer contra o meu.

— Não digas nada à minha mãe — pediu-me ela baixinho.

Naquele momento percebi: todas nós carregávamos feridas invisíveis. A diferença era só quem sabia escondê-las melhor.

Nos meses seguintes tentei ajudar Mariana a sair daquela relação abusiva. Mas ela voltava sempre para ele. “Ele prometeu mudar”, dizia-me com esperança nos olhos.

Enquanto isso, a minha própria vida parecia estagnar. O trabalho no call center era sufocante; os clientes gritavam comigo ao telefone e os chefes faziam-me sentir descartável.

Uma tarde, depois de mais um turno infernal, sentei-me num banco do Jardim da Estrela e chorei baixinho. Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado e perguntou:

— Está tudo bem, menina?

Quis responder que sim, mas as lágrimas traíram-me.

— Sabe — disse ela — quando eu era nova também achava que nunca ia ser suficiente para ninguém. Mas aprendi que só nós podemos decidir o nosso valor.

Aquelas palavras ficaram comigo durante dias. Comecei a escrever sobre tudo o que sentia: as dores, as dúvidas, os medos. Publiquei alguns textos num blog anónimo e recebi mensagens de outras mulheres que se reviam nas minhas palavras.

Um dia, recebi um email de uma editora pequena em Lisboa:

— Gostaríamos de publicar um livro seu.

O coração quase me saltou do peito. Corri para contar à minha mãe, mas ela apenas disse:

— Isso é bonito, filha… mas não te esqueças das contas para pagar.

Senti vontade de gritar, mas limitei-me a sorrir tristemente.

O livro saiu meses depois e teve algum sucesso entre mulheres da minha idade. Pela primeira vez senti orgulho em mim própria — mas também medo: medo de não estar à altura das expectativas agora criadas.

A Patrícia ligou-me para dar os parabéns:

— Inês, és incrível! Sempre foste! Só tu é que não vias isso…

Sofia mandou-me uma mensagem com uma foto da filha recém-nascida:

— O teu livro ajudou-me tanto nestes dias difíceis… Obrigada por existires.

Mesmo assim, havia dias em que olhava para o espelho e só via defeitos. A voz da minha mãe ecoava dentro da minha cabeça: “Nunca vais ser suficiente”.

Numa noite chuvosa, sentei-me à secretária e escrevi uma carta à minha mãe — uma carta que nunca cheguei a entregar:

“Mãe,
Sei que queres o melhor para mim, mas às vezes sinto que nunca vou conseguir agradar-te. Tento ser forte como tu foste toda a vida, mas sou diferente. Preciso que me aceites assim: imperfeita, sensível… humana.
Com amor,
Inês”

Guardei a carta na gaveta e decidi viver por mim mesma dali em diante.

Hoje continuo a lutar contra as dúvidas e inseguranças. Mas aprendi que o valor de uma mulher não está no olhar dos outros — está na coragem de continuar mesmo quando tudo parece perdido.

E vocês? Quantas vezes já se sentiram invisíveis? Será possível quebrar este ciclo de exigências impossíveis ou estamos condenadas a viver à sombra das expectativas dos outros?