No dia do aniversário do meu pai, ele anunciou que ia embora: Um ano de silêncio antes do divórcio
— Não consigo mais fingir. — A voz do meu pai cortou o silêncio da sala, enquanto o bolo de aniversário ainda fumegava com as velas apagadas. O garfo caiu da mão da minha mãe, fazendo um barulho seco no prato. O meu irmão mais novo, o Tiago, olhou para mim com os olhos arregalados. Eu senti o coração a bater tão forte que parecia querer saltar-me do peito.
— O que é que estás a dizer, Manuel? — perguntou a minha mãe, a voz trémula, como se já soubesse a resposta.
O meu pai olhou para cada um de nós, demorando-se no olhar da minha mãe. — Vou sair de casa. Não sou feliz há muito tempo. Não é culpa de ninguém… simplesmente não consigo continuar assim.
O silêncio caiu sobre nós como uma manta pesada. Eu queria gritar, perguntar porquê agora, porquê no dia do seu aniversário, porquê à mesa onde sempre fomos uma família. Mas não consegui dizer nada. O Tiago levantou-se e saiu da sala, batendo com a porta do quarto.
A minha mãe ficou sentada, imóvel. Depois de alguns minutos, levantou-se devagar e foi atrás dele. Fiquei sozinha com o meu pai. Ele tentou tocar-me na mão, mas eu afastei-a.
— Não faças isto, pai. — A minha voz saiu num sussurro quase inaudível.
Ele suspirou. — Desculpa, Inês. Eu tentei…
Naquela noite não dormi. Ouvi a minha mãe a chorar baixinho no quarto ao lado. O Tiago não saiu do quarto nem para jantar. O meu pai ficou na sala até tarde, sentado no escuro.
No dia seguinte, a minha mãe chamou-nos à cozinha. Tinha os olhos inchados, mas falava com uma calma estranha.
— Quero pedir-vos uma coisa. — Olhou para mim e para o Tiago. — Manuel, quero que fiques mais um ano connosco. Só um ano. Depois disso… fazemos o que for preciso.
O meu pai hesitou, mas acabou por acenar com a cabeça.
Esse ano foi o mais longo da minha vida. O ambiente em casa era tenso, como se todos andássemos em cima de vidro partido. O meu pai dormia no sofá e evitava estar sozinho com a minha mãe. As conversas eram curtas e práticas: quem ia buscar o Tiago à escola, quem fazia as compras, quem cozinhava.
Eu estava no último ano da faculdade de Direito em Lisboa e vinha a casa aos fins de semana. Cada regresso era um mergulho num mar de silêncio e olhares fugidios. O Tiago fechou-se ainda mais no seu mundo; passava horas no computador ou com os auscultadores nos ouvidos.
Uma noite, ouvi os meus pais a discutir baixinho na cozinha:
— Não podes simplesmente desistir de nós! — sussurrava a minha mãe.
— Já desisti há muito tempo, Leonor… só não tive coragem de admitir.
Senti-me traída por ambos: pelo meu pai, por querer ir embora; pela minha mãe, por insistir numa mentira durante tanto tempo.
No Natal, tentámos fingir normalidade. A árvore estava montada como sempre, mas ninguém cantou canções nem fez piadas à mesa. O meu pai ofereceu-me um livro de poesia portuguesa antiga — sempre soube que eu adorava ler — e escreveu uma dedicatória: “Para a Inês, que sempre procurou a verdade.” Quase chorei ao ler aquilo.
Comecei a evitar estar em casa. Arranjei um estágio num escritório em Lisboa e passava lá os fins de semana também. Sentia-me culpada por deixar o Tiago sozinho com tudo aquilo, mas não aguentava mais aquele ambiente sufocante.
Um dia, a minha mãe ligou-me em lágrimas:
— O teu pai não veio dormir a casa…
Fui para casa imediatamente. Encontrei-a sentada à mesa da cozinha, com uma chávena de chá frio nas mãos.
— Ele tem outra pessoa? — perguntei.
Ela olhou para mim com uma dor profunda nos olhos.
— Não sei… talvez tenha. Mas acho que já não me ama há muitos anos.
Senti raiva do meu pai pela traição silenciosa e raiva da minha mãe por nunca ter tido coragem de enfrentar a verdade antes.
O Tiago começou a sair à noite com amigos mais velhos e chegou várias vezes bêbado a casa. Uma noite, ligaram-nos do hospital: ele tinha-se envolvido numa briga num bar em Cascais. Fui buscá-lo e no carro ele desabou:
— Porque é que ele não gosta de nós? O que é que fizemos de mal?
Não soube responder-lhe.
O tempo foi passando e o aniversário do meu pai voltou a aproximar-se. A minha mãe parecia ter envelhecido dez anos naquele espaço de meses. Eu estava prestes a casar-me com o Miguel — o meu namorado desde o secundário — e sentia-me dividida entre o medo de repetir os erros dos meus pais e o desejo de construir algo diferente.
Um mês antes do casamento, sentei-me com a minha mãe na varanda ao fim da tarde:
— Achas que alguma vez foste feliz com o pai?
Ela ficou calada durante muito tempo antes de responder:
— Fui… mas depois deixei de ser e tive medo de admitir isso até para mim mesma.
Nesse momento percebi o peso dos segredos familiares: as coisas que nunca dizemos uns aos outros vão crescendo até se tornarem muralhas entre nós.
Quando finalmente chegou o dia do divórcio, um ano depois daquele aniversário fatídico, senti um alívio estranho misturado com tristeza. O meu pai saiu de casa sem olhar para trás; a minha mãe chorou baixinho no quarto; o Tiago fechou-se ainda mais no seu silêncio revoltado.
No dia do meu casamento, olhei para o Miguel enquanto dizíamos os votos e prometi a mim mesma nunca esconder-lhe nada — nem mesmo as minhas dúvidas ou medos.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim, presas em silêncios e segredos? Será possível quebrar este ciclo ou estamos todos condenados a repetir os mesmos erros dos nossos pais?