No Dia da Nossa Aniversário, Ele Esqueceu Que Ainda Estávamos Juntos

— Rita, não me esperes para jantar. Tenho uma reunião que vai acabar tarde — a mensagem chegou seca, sem emojis, sem um beijo, sem sequer um ponto final. Li-a três vezes, sentada no carro, com o saco do bolo de noz e a garrafa de vinho no banco do passageiro. O rádio ainda tocava aquela música antiga dos Xutos & Pontapés, mas o som parecia vir de muito longe. O dia estava cinzento, e o vidro embaciado refletia o meu rosto cansado.

Era o nosso aniversário de casamento. Onze anos. Onze anos de promessas, de discussões, de reconciliações à meia-noite, de risos partilhados à mesa da cozinha enquanto os miúdos dormiam. Onze anos em que sempre foi ele a preparar surpresas: flores na almofada, bilhetes para concertos, jantares em restaurantes onde nunca me lembrava do nome. Este ano decidi inverter os papéis. Queria mostrar-lhe que também sei cuidar, que também sei surpreender.

Mas ele esqueceu-se. Não só das flores. Esqueceu-se que ainda estávamos juntos.

Fiquei ali sentada, a olhar para o telemóvel como se ele pudesse mudar de ideia se eu esperasse tempo suficiente. O bolo começou a derreter dentro do saco. O vinho ficou morno. E eu senti-me ridícula — uma mulher de 38 anos, mãe de dois filhos, à espera de um marido que já não vinha.

Quando finalmente entrei em casa, o silêncio era ensurdecedor. Os miúdos estavam na casa da minha mãe — combinei tudo para termos a noite só para nós. A sala parecia maior sem brinquedos espalhados pelo chão. Pousei o bolo na mesa e sentei-me no sofá, abraçando uma almofada como se fosse um salva-vidas.

Lembrei-me da primeira vez que nos beijámos, no jardim da Gulbenkian, com as mãos frias e os corações quentes. Lembrei-me do dia em que ele me pediu em casamento, atrapalhado, com um anel barato mas um sorriso sincero. Lembrei-me das noites em claro com o Tomás bebé a chorar e nós dois a rir porque já não sabíamos o que fazer.

Onde é que tudo se perdeu?

O relógio marcava quase meia-noite quando ouvi a chave na porta. O Marek entrou devagarinho, como se tivesse medo de acordar alguém. Nem reparou em mim sentada no escuro.

— Chegaste tarde — disse eu, tentando manter a voz firme.

Ele sobressaltou-se e olhou para mim como se fosse um fantasma.

— Rita… não sabia que estavas acordada.

— Pois… Hoje é o nosso aniversário.

Ele ficou calado. Olhou para o chão, depois para mim, depois para o bolo esquecido na mesa.

— Desculpa — murmurou. — Esqueci-me completamente.

— Esqueceste-te de quê? Das flores? Do jantar? Ou esqueceste-te que ainda somos marido e mulher?

O silêncio dele foi a resposta mais cruel.

Levantei-me devagar e fui buscar dois copos. Abri o vinho com mãos trémulas e servi-nos. Ele aceitou o copo sem protestar.

— Marek… O que é que se passa connosco?

Ele suspirou fundo e passou as mãos pelo cabelo.

— Não sei… Sinto-me perdido. O trabalho está a sufocar-me, os miúdos… E tu… Tu pareces sempre tão distante ultimamente.

Ri-me amargamente.

— Distante? Eu? Eu é que passo os dias a tentar manter isto tudo de pé! A casa, os miúdos, tu! E tu nem sequer reparas!

Ele levantou-se abruptamente.

— Achas que é fácil para mim? Achas que eu não sinto falta do que éramos? Mas tudo mudou! Tu mudaste!

Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim.

— Eu mudei? Ou foste tu que deixaste de tentar?

Ele atirou o copo para cima da mesa e saiu da sala sem dizer mais nada. Fiquei ali sozinha, com o som do relógio a marcar cada segundo da nossa distância.

Na manhã seguinte, acordei com a cama vazia ao meu lado. Fui à cozinha e encontrei um bilhete escrito à pressa:

“Fui correr. Preciso pensar.”

Passei o dia inteiro num torpor. Liguei à minha mãe para saber dos miúdos e inventei uma desculpa qualquer para não ir buscá-los logo. Não tinha forças para fingir normalidade.

À tarde, decidi arrumar a casa — aquela arrumação furiosa que só fazemos quando queremos calar os pensamentos. No fundo do armário encontrei uma caixa cheia de cartas antigas: bilhetes de amor, fotografias amarelecidas, desenhos dos miúdos quando eram pequenos. Sentei-me no chão e chorei tudo o que tinha guardado durante meses.

Quando Marek voltou, trazia um ar cansado e olheiras profundas.

— Precisamos falar — disse ele.

Sentei-me à mesa, preparada para ouvir tudo menos aquilo que ele disse:

— Rita… Eu conheci alguém no trabalho.

O chão fugiu-me dos pés. Senti vontade de gritar, de atirar-lhe tudo à cara — mas fiquei muda. Ele continuou:

— Não aconteceu nada… ainda. Mas sinto-me vivo quando estou com ela. E contigo… só sinto peso.

As palavras dele eram facas afiadas.

— Então é isso? Vais desistir assim?

Ele baixou os olhos.

— Não sei o que quero. Só sei que não posso continuar assim.

Levantei-me devagar e fui até à janela. Lá fora chovia torrencialmente. As lágrimas misturaram-se com a chuva no vidro.

— Marek… Eu também estou cansada. Mas não vou lutar sozinha por isto.

Ele aproximou-se e tentou tocar-me no ombro, mas recuei instintivamente.

— Preciso de tempo — disse ele baixinho.

Durante dias vivemos como estranhos na mesma casa. Os miúdos voltaram e tentámos fingir normalidade, mas até eles perceberam que algo estava errado. O Tomás perguntou-me porque é que o pai já não contava histórias antes de dormir. A Leonor fez desenhos com três pessoas em vez de quatro.

Uma noite ouvi Marek ao telefone na varanda:

— Não posso falar agora… Sim… Eu também tenho saudades tuas…

O meu coração partiu-se em mil pedaços.

No fim-de-semana seguinte fui passar uns dias com os miúdos à casa da minha mãe em Sintra. Precisava respirar outro ar, ouvir outros conselhos. A minha mãe olhou para mim com aquela sabedoria antiga das mulheres portuguesas:

— Filha… Não há casamento perfeito. Mas também não há razão para viveres infeliz só porque sim. Tens de decidir se ainda vale a pena lutar ou se está na hora de seguir em frente.

Passei horas a caminhar pelos jardins húmidos da serra, a pensar em tudo o que fomos e no pouco que restava agora. Lembrei-me das palavras do Marek: “só sinto peso”. E percebi que eu também já só sentia cansaço.

Quando voltei a Lisboa, sentei-me com ele à mesa da cozinha — aquela mesma mesa onde tantas vezes rimos juntos — e disse-lhe:

— Marek… Não quero ser um peso para ti nem tu para mim. Se já não somos felizes juntos, talvez seja melhor cada um seguir o seu caminho.

Ele chorou pela primeira vez em muitos anos. Abraçámo-nos longamente — não como amantes ou marido e mulher, mas como dois amigos que partilham uma dor antiga.

Hoje escrevo esta história sentada sozinha na mesma sala onde esperei por ele naquele aniversário esquecido. Os miúdos dormem no quarto ao lado e eu bebo um copo do mesmo vinho tinto daquela noite fatídica.

Pergunto-me: quantos casais vivem assim — juntos apenas por hábito ou medo da solidão? Quantos aniversários são esquecidos até já não restar nada para celebrar?

E vocês? Já sentiram esse vazio dentro de casa? O que fariam se fossem eu?