No Altar da Verdade: O Dia em que o Meu Mundo Ruiu
— Mariana, tens a certeza do que vais fazer? — sussurrou a minha irmã, Joana, agarrando-me no braço com força enquanto eu ajeitava o véu. O salão da Quinta dos Cedros estava cheio de vozes ansiosas e olhares expectantes. O cheiro das flores misturava-se com o nervosismo no ar. Eu sentia o coração a bater tão forte que temi que todos ouvissem.
Olhei para o espelho e vi uma mulher vestida de branco, mas com os olhos vermelhos de tanto chorar na noite anterior. Respirei fundo. “Não posso continuar a viver uma mentira”, pensei. O meu corpo tremia, mas a decisão estava tomada. Não era só por mim — era por todas as vezes que me anulei para agradar aos outros, por todas as noites em que me senti sozinha mesmo ao lado dele.
A porta abriu-se e o meu pai apareceu, sorrindo com orgulho. “Estás linda, filha. O António é um homem de sorte.” Senti um nó na garganta. Quis gritar-lhe que não era verdade, que ele não fazia ideia do que se passava. Mas limitei-me a sorrir, porque era isso que se esperava de mim.
A música começou e caminhei pelo corredor, sentindo os olhares de todos: tias, primos, amigos de infância, colegas do António do escritório. Ele estava lá à frente, de sorriso nervoso, mas confiante. A minha mãe chorava discretamente ao lado da sogra. Tudo parecia perfeito — menos eu.
Quando o padre perguntou se queríamos trocar votos personalizados, António sorriu e disse:
— Mariana, escrevi algo especial para ti.
Mas antes que pudesse começar, levantei a mão.
— Desculpa, padre. Antes de ouvirmos o António, gostava de dizer umas palavras.
O silêncio caiu sobre a sala como uma tempestade iminente. Senti as mãos a suar enquanto tirava o telemóvel do bolso do vestido — sim, tinha-o escondido ali propositadamente. Olhei para ele e depois para os convidados.
— Hoje devia ser o dia mais feliz da minha vida. Mas não posso continuar sem ser honesta convosco… e comigo própria.
Vi o rosto do António mudar de cor. A minha mãe levou a mão à boca. O meu pai franziu o sobrolho.
— Durante meses, tentei ignorar sinais. Mensagens trocadas tarde da noite, desculpas esfarrapadas para chegar tarde a casa… Até que há duas semanas encontrei isto.
Abri as mensagens no ecrã e comecei a ler:
— “Adorei ontem à noite… Mal posso esperar para te ver outra vez.” — A voz saiu-me trémula, mas continuei. — “Ela não desconfia de nada. És tudo o que sempre quis.” — Fiz uma pausa e olhei para ele. — Reconheces estas palavras, António?
O salão explodiu em murmúrios. A mãe dele levantou-se num salto:
— Isto é algum tipo de brincadeira?
O António tentou agarrar-me na mão:
— Mariana, podemos falar lá fora? Por favor…
Afastei-me.
— Não há nada para falar. Eu amei-te com tudo o que tinha. Perdoei-te quando chegavas tarde, quando esquecias datas importantes… Sempre arranjei desculpas para ti. Mas hoje não vou arranjar desculpas para mim mesma.
A minha avó começou a chorar baixinho. O meu irmão levantou-se e foi ter comigo:
— Mariana, tens a certeza? Não queres pensar melhor?
Olhei para ele com lágrimas nos olhos:
— Não posso casar-me com alguém que me traiu desta forma.
O António caiu de joelhos:
— Mariana, foi um erro! Eu amo-te! Foi só uma vez…
Ri-me amargamente:
— Só uma vez? Queres que continue a ler? Porque há mais…
O padre tentou intervir:
— Talvez devêssemos dar algum tempo aos noivos…
Mas eu já não era noiva de ninguém naquele momento.
— Não há casamento — disse eu, com a voz firme pela primeira vez em meses.
O salão ficou em silêncio absoluto. Os convidados começaram a levantar-se, alguns chocados, outros murmurando entre si. A minha mãe aproximou-se de mim:
— Filha… como é que nunca disseste nada?
— Porque tinha vergonha — respondi baixinho. — Porque achei que era culpa minha ele já não me olhar como antes.
A minha tia Rosa aproximou-se do António:
— És um canalha! Como foste capaz?
Ele chorava agora, mas eu já não sentia pena. Senti-me estranhamente leve — como se finalmente pudesse respirar depois de meses sufocada.
Saí do altar sem olhar para trás. Lá fora, sentei-me num banco do jardim e chorei tudo o que tinha para chorar. A Joana veio ter comigo e abraçou-me.
— Foste corajosa — disse ela. — Podes não acreditar agora, mas fizeste o certo.
Ficámos ali em silêncio até os convidados começarem a sair um a um, alguns lançando-me olhares de pena, outros de admiração.
Nos dias seguintes, enfrentei tudo: as chamadas dos familiares indignados, as mensagens dos amigos divididos entre apoiar-me ou lamentar pelo “escândalo”. A minha mãe tentou convencer-me a perdoar:
— Todos cometem erros, Mariana…
Mas eu sabia que não era só um erro — era uma escolha repetida de desrespeito.
O António tentou ligar-me dezenas de vezes. Mandou flores, cartas escritas à mão, até apareceu à porta dos meus pais a chorar.
— Dá-me outra oportunidade! Eu mudo!
Mas eu já não queria ouvir promessas vazias.
A solidão foi dura nos primeiros meses. Senti vergonha de sair à rua na vila onde todos se conhecem e onde as notícias correm depressa demais. Ouvi sussurros no café da Dona Lurdes:
— Coitada da Mariana…
— Também ela devia ter visto os sinais…
— O António sempre foi assim…
Mas aos poucos fui recuperando forças. Voltei ao trabalho na escola primária onde dou aulas e descobri apoio nos colegas e nas crianças que me faziam rir mesmo nos dias mais cinzentos.
A minha família acabou por aceitar a minha decisão — até o meu pai, que durante semanas mal me olhou nos olhos por vergonha do escândalo.
Um dia sentei-me com ele na varanda ao pôr-do-sol e perguntei-lhe:
— Achas que algum dia vou voltar a confiar em alguém?
Ele apertou-me a mão e disse:
— Vais sim, filha. Porque tiveste coragem de escolher-te a ti própria quando era mais fácil fingir.
Hoje olho para trás e vejo aquele dia não como o fim da minha felicidade, mas como o início da minha liberdade. Ainda dói lembrar os olhares magoados da família e as palavras cruéis dos que nunca souberam o que vivi dentro de quatro paredes.
Mas pergunto-me: quantas pessoas continuam presas em relações onde são traídas — não só pelo outro, mas por si mesmas ao ignorarem o seu valor? Será melhor viver uma mentira confortável ou enfrentar uma verdade dolorosa?
E vocês? O que fariam se estivessem no meu lugar?