Não Vou Deixar o Meu Filho: A Luta de Um Pai Contra o Frio da Própria Mãe

— Sai já daqui, Miguel! E leva esse miúdo contigo! — gritou a minha mãe, com os olhos cheios de uma raiva que eu nunca lhe tinha visto.

O trovão ribombou lá fora, como se o céu também se revoltasse contra mim. O meu filho, o pequeno Tomás, chorava no meu colo, assustado com a tempestade e, talvez, com a tensão que pairava no ar. Eu estava paralisado, incapaz de acreditar no que estava a acontecer. Como é que a minha própria mãe podia expulsar-me assim? Como é que podia virar-me as costas, logo agora que eu mais precisava dela?

— Mãe, por favor… Ele só tem um ano! Não temos para onde ir! — supliquei, sentindo a voz embargar-se-me na garganta.

Ela virou-me as costas, fria como nunca. — Devias ter pensado nisso antes de engravidares aquela rapariga e trazeres problemas para esta casa. Eu já criei um filho sozinha, não vou criar outro neto. Arranja-te.

O Tomás soluçava baixinho. Peguei na mochila com as poucas fraldas e roupas que consegui apanhar à pressa e saí porta fora, sentindo a chuva gelada misturar-se com as lágrimas que me escorriam pela cara.

Caminhei sem rumo pelas ruas de Setúbal, procurando abrigo. Lembrei-me da Andreia, a mãe do Tomás, mas ela tinha desaparecido pouco depois do parto. Nunca quis saber do filho. Fiquei sozinho com um bebé nos braços e um mundo inteiro contra mim.

A primeira noite foi passada num banco de jardim, debaixo de uma paragem de autocarro. O Tomás dormiu encostado ao meu peito, e eu fiquei acordado a noite toda, vigiando-o e tentando protegê-lo do frio. Senti-me miserável. Senti raiva da minha mãe, da Andreia, de mim próprio. Mas acima de tudo, senti medo. Medo de não conseguir proteger o meu filho.

No dia seguinte, fui ao centro social pedir ajuda. A assistente social olhou para mim com desconfiança.

— O senhor tem emprego?
— Tinha… Fui despedido há dois meses. Estou à procura.
— E família?
— Só a minha mãe… mas ela não me quer em casa.

Ela suspirou e disse que ia tentar arranjar-nos um quarto numa pensão social. Enquanto esperava, sentei-me no corredor com o Tomás ao colo. Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado e sorriu-lhe.

— Que menino tão bonito… — disse ela. — Não desista dele. Os filhos são tudo.

Essas palavras ficaram-me gravadas na memória.

Conseguiram-nos um quarto pequeno numa pensão partilhada com outras famílias em dificuldades. O cheiro a mofo era intenso e as paredes estavam manchadas de humidade, mas pelo menos tínhamos um teto. Passei os dias a procurar trabalho — qualquer coisa servia — mas ninguém queria contratar um pai solteiro sem experiência e com um bebé pequeno.

O dinheiro acabou depressa. Comecei a saltar refeições para que o Tomás tivesse sempre leite e fruta. Às vezes, sentia-me tão fraco que mal conseguia levantar-me da cama. Mas bastava olhar para ele para ganhar forças.

Uma tarde, enquanto mudava a fralda ao Tomás na casa de banho partilhada, ouvi duas mulheres a cochichar:

— Dizem que ele foi posto fora de casa pela mãe…
— Coitado do miúdo… Mas também, quem manda meter-se com aquela Andreia?

Senti vergonha e raiva. Porque é que toda a gente julgava sem saber? Ninguém sabia o quanto eu lutava todos os dias para dar ao meu filho uma vida digna.

Certo dia, recebi uma chamada inesperada da minha irmã mais velha, a Catarina.

— Miguel… soube do que aconteceu. Precisas de ajuda?

Hesitei antes de responder. Sempre fomos próximos em crianças, mas ela afastou-se quando casou com o Rui e mudou-se para Lisboa.

— Preciso… mas não quero ser um peso para ti.
— Não digas disparates! Vem cá passar uns dias connosco. O Tomás pode brincar com os teus sobrinhos.

Fui para Lisboa com esperança renovada. A Catarina recebeu-nos de braços abertos, mas o Rui não disfarçou o incómodo.

— Isto não pode ser para sempre — disse ele uma noite à mesa. — Temos três filhos e pouco espaço.

A Catarina tentou defendê-lo:

— É só até o Miguel arranjar trabalho!

Mas percebi logo que não podia ficar ali muito tempo. Procurei emprego em cafés e supermercados até conseguir um trabalho temporário numa pastelaria do bairro. Trabalhava doze horas por dia por pouco mais que o salário mínimo, mas pelo menos podia pagar um quarto alugado num bairro modesto.

A Catarina chorou quando nos despedimos.

— Desculpa não poder fazer mais…
— Já fizeste tudo, mana. Obrigado por acreditares em mim.

Os meses seguintes foram duros. O Tomás começou a andar e a dizer as primeiras palavras — “papá” foi uma delas — e isso enchia-me de orgulho e dor ao mesmo tempo. Queria dar-lhe tudo, mas só conseguia dar-lhe o básico.

Às vezes sonhava com a Andreia a bater-nos à porta e a pedir perdão. Outras vezes sonhava com a minha mãe a abraçar-nos e a dizer que estava arrependida. Mas nada disso aconteceu.

Um dia, ao sair do trabalho, encontrei a minha mãe à porta da pastelaria. Estava mais velha, mais cansada.

— Miguel… podemos falar?

O meu coração disparou no peito.

— O que queres?
— Tenho saudades do Tomás… E tu és meu filho.

Fiquei calado durante uns segundos eternos. Queria gritar-lhe tudo o que tinha guardado dentro de mim: a dor, o abandono, o medo das noites frias na rua. Mas só consegui perguntar:

— Porque é que nos puseste fora de casa?

Ela baixou os olhos.

— Tive medo… Medo de não conseguir ajudar-te como tu precisavas. Fiquei zangada contigo por causa da Andreia… E depois já era tarde demais para voltar atrás.

O Tomás apareceu atrás de mim e olhou para ela com curiosidade.

— Avó? — perguntou ele timidamente.

A minha mãe ajoelhou-se à frente dele e chorou pela primeira vez desde que me lembro.

— Desculpa, meu amor… Desculpa papá também…

Nesse momento percebi que perdoar não era esquecer tudo o que tinha acontecido, mas sim libertar-me daquele peso no peito. Aceitei o abraço dela — por mim e pelo Tomás.

Hoje vivemos juntos novamente, mas nada voltou a ser como antes. A relação ficou marcada pelas feridas do passado, mas tentamos todos os dias reconstruir alguma coisa parecida com uma família.

Às vezes pergunto-me: será possível curar todas as mágoas? Ou há dores que ficam para sempre? E vocês, já sentiram que tiveram de lutar contra quem mais amam?