Não sou tua criada: A história de uma mulher de Lisboa
— Não sou tua criada, Rui! — gritei, com a voz embargada, enquanto segurava o pano de cozinha com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. O cheiro do arroz queimado misturava-se com o perfume barato da minha sogra, que pairava no ar desde que ela chegara sem avisar, como fazia todas as quartas-feiras.
O Rui olhou para mim, surpreendido, como se eu tivesse acabado de dizer a coisa mais absurda do mundo. — Mas ninguém disse que eras — respondeu, baixinho, desviando o olhar para o telemóvel. A minha sogra, Dona Teresa, sentada à mesa da cozinha, suspirou alto e revirou os olhos.
— Se não queres fazer o jantar, diz logo. Eu faço. Não tenho problema nenhum — disse ela, com aquele tom passivo-agressivo que me fazia sentir uma intrusa na minha própria casa.
A minha cunhada, Filipa, apareceu à porta da cozinha com o seu ar de superioridade habitual. — Mãe, deixa estar. A Marta está cansada. Trabalhar num escritório não é fácil — ironizou, lançando-me um olhar cortante.
A raiva e a frustração fervilhavam dentro de mim. Trabalhar num escritório? Era verdade, mas ninguém ali parecia lembrar-se que eu também era mãe, esposa, dona de casa e ainda filha de uma mãe doente que vivia em Setúbal. Todos esperavam que eu fosse perfeita em todos os papéis, mas nunca havia espaço para mim.
Lembro-me do início do meu casamento com o Rui. Ele era carinhoso, atencioso, fazia-me sentir especial. Mas com o tempo, tudo mudou. As visitas da sogra tornaram-se rotina; as críticas da Filipa, constantes; e o Rui… o Rui foi-se afastando. Agora era só silêncio entre nós, um silêncio pesado que me esmagava.
Naquela noite, depois do jantar — que acabei por fazer sozinha enquanto todos se sentavam à mesa a conversar sobre futebol e novelas — fui para o quarto e fechei a porta. Sentei-me na cama e deixei as lágrimas correrem. Senti-me tão pequena, tão invisível.
O telemóvel vibrou. Era uma mensagem da minha mãe: “Filha, como estás? Preciso de ti este fim de semana.” O coração apertou-se ainda mais. Como podia dividir-me entre todos? Entre o Rui e a família dele, o trabalho e a minha mãe? E eu? Onde ficava eu?
No dia seguinte acordei cedo. O Rui já tinha saído para trabalhar sem se despedir. Fui ao espelho e quase não me reconheci: olheiras profundas, cabelo desgrenhado, olhar vazio. Peguei numa fotografia antiga — eu e o Rui na praia da Comporta, sorridentes, apaixonados — e perguntei-me onde tinha ido parar aquela mulher.
No trabalho tentei concentrar-me nos relatórios, mas a cabeça estava longe. A minha colega Ana percebeu logo.
— Estás bem, Marta? Pareces distante.
— Só estou cansada — menti.
Ela sorriu com compreensão. — Se precisares de falar…
Queria falar. Queria gritar. Mas calei-me.
À hora de almoço liguei à minha mãe.
— Mãe, desculpa… Não sei se consigo ir este fim de semana. Está tudo tão complicado aqui em casa…
Ela ficou em silêncio por uns segundos.
— Filha, tu tens de pensar em ti também. Não podes carregar o mundo às costas.
As palavras dela ecoaram na minha cabeça durante todo o dia.
Quando cheguei a casa ao final da tarde encontrei Dona Teresa na sala com a Filipa. Estavam a ver televisão e nem se dignaram a olhar para mim.
— Marta, já pus a roupa a lavar — disse a sogra sem tirar os olhos do ecrã.
— Obrigada — respondi automaticamente.
Fui para a cozinha preparar o jantar. O Rui chegou pouco depois e foi direto para o duche sem me cumprimentar. Senti uma solidão tão grande que quase me sufocou.
Durante o jantar tentei puxar conversa.
— Rui, achas que podíamos passar um fim de semana só os dois? Fazia-nos bem…
Ele encolheu os ombros.
— Agora não dá jeito. A minha mãe precisa de ajuda com umas coisas lá em casa.
A Filipa riu-se.
— A Marta quer férias da família! — exclamou em tom trocista.
Senti o sangue ferver nas veias.
— Não quero férias da família! Só queria um pouco de tempo para nós… ou para mim! Será pedir muito?
O silêncio caiu como uma pedra sobre a mesa. Ninguém respondeu. Levantei-me e fui para o quarto antes que as lágrimas me traíssem outra vez.
Nessa noite não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto escuro e a pensar na minha vida. Lembrei-me dos meus sonhos: queria ser escritora, viajar pelo mundo, conhecer pessoas novas… Agora sentia-me presa numa rotina sufocante.
No sábado acordei decidida a mudar alguma coisa. Preparei um pequeno-almoço simples e sentei-me à mesa com o Rui.
— Precisamos de conversar — disse-lhe.
Ele olhou para mim desconfiado.
— Sobre o quê?
— Sobre nós. Sobre mim. Sinto que estou a desaparecer nesta casa. Sinto que só sirvo para cozinhar, limpar e agradar à tua família. E tu nem reparas em mim!
Ele suspirou.
— Marta… isto é só uma fase. Toda a gente passa por isto.
— Não! Não é só uma fase! Eu quero mais da vida! Quero ser feliz! Quero ser vista!
A voz saiu trémula mas firme. Pela primeira vez em anos senti-me dona das minhas palavras.
O Rui ficou calado durante uns segundos intermináveis.
— Se não estás feliz… não sei o que te dizer — murmurou finalmente.
Levantei-me da mesa com lágrimas nos olhos mas com uma estranha sensação de alívio. Fui até ao quarto e comecei a arrumar uma mala pequena: umas roupas, um livro antigo de poesia portuguesa que adorava em miúda, e a fotografia da praia da Comporta.
Antes de sair liguei à minha mãe:
— Mãe… posso ir ter contigo?
Do outro lado ouvi um sorriso emocionado:
— Claro que sim, filha. Vem quando quiseres.
Saí de casa sem olhar para trás. O ar fresco da manhã bateu-me no rosto como um recomeço possível.
No comboio para Setúbal olhei pela janela e pensei em tudo o que deixava para trás: as expectativas dos outros, os silêncios pesados, os sonhos adiados. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
Agora escrevo esta história sentada no velho sofá da casa da minha mãe, com vista para o rio Sado. Ainda não sei como será o futuro — se voltarei para o Rui ou se seguirei sozinha — mas sei que preciso de me reencontrar antes de pertencer a alguém outra vez.
Pergunto-me: quantas mulheres vivem presas às expectativas dos outros? Quantas esquecem quem são para agradar à família? E tu… já te sentiste assim alguma vez?