Não sou cuidadora – uma história sobre limites, família e o direito à própria vida
— Não podes simplesmente virar costas à família, Marta! — gritou o meu cunhado, João, com a voz embargada de raiva e desespero. O eco das suas palavras ainda ressoava na sala, misturando-se com o cheiro a sopa requentada e o tique-taque do relógio da parede. Eu estava sentada à mesa da cozinha da casa da minha sogra, as mãos trémulas agarradas à chávena de chá frio, o olhar perdido na toalha manchada de café.
Naquele momento, senti-me pequena. Como se todo o peso do mundo estivesse sobre os meus ombros. A minha sogra, Dona Amélia, estava acamada há meses, vítima de um AVC que lhe roubou a fala e a mobilidade. O meu marido, Luís, trabalhava horas intermináveis como motorista de autocarros, e os irmãos dele — João e Teresa — apareciam apenas para discutir, nunca para ajudar.
— Não é justo — murmurei, quase sem voz. — Eu também tenho uma vida…
João bufou, cruzando os braços. — Vida? Achas que alguém aqui tem vida? A mãe precisa de ti. És a única que pode ficar com ela.
Olhei para ele, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. Ninguém parecia importar-se com o facto de eu ter deixado o meu emprego como professora primária para cuidar da Dona Amélia. Ninguém perguntava se eu dormia, se comia, se chorava à noite quando todos dormiam. Ninguém via as minhas mãos gretadas dos banhos diários, ouvia os meus gritos silenciosos no duche.
A Teresa entrou na cozinha nesse instante, trazendo um saco de compras. — Trouxe fraldas e leite — anunciou, pousando tudo em cima da mesa. Olhou-me de relance, com aquele ar de quem faz um favor ao mundo só por aparecer.
— Obrigada — murmurei, sem energia para discutir.
— Olha, Marta — começou ela, sentando-se à minha frente — eu sei que não é fácil. Mas tu és tão paciente… sempre foste. E a mãe gosta tanto de ti…
Engoli em seco. “A mãe gosta tanto de ti.” Era sempre assim: eu era a nora preferida, a que sabia lidar com tudo, a que nunca levantava a voz. Mas ninguém perguntava se eu queria ser essa pessoa.
As semanas passaram num ritmo sufocante. Os dias misturavam-se uns nos outros: levantar cedo para dar banho à Dona Amélia, preparar as refeições especiais, trocar fraldas, administrar medicamentos. O Luís chegava tarde e mal falava comigo; estava exausto e frustrado por não poder ajudar mais. Às vezes discutíamos baixinho no quarto:
— Não aguento mais — confessei-lhe uma noite, com a voz embargada pelas lágrimas.
— O que queres que faça? — respondeu ele, cansado. — Não posso largar o trabalho…
— E os teus irmãos? Porque é que sou sempre eu?
Ele encolheu os ombros. — Eles têm as vidas deles…
— E eu? Eu não tenho?
O silêncio dele foi mais doloroso do que qualquer palavra.
Comecei a sentir-me invisível. Os meus amigos deixaram de ligar; já não sabiam o que dizer. A minha mãe tentava apoiar-me à distância, mas também ela estava doente e não podia ajudar fisicamente. Senti-me sozinha como nunca antes.
Uma tarde, enquanto mudava os lençóis da cama da Dona Amélia, ela agarrou-me a mão com força inesperada. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Tentou dizer algo, mas só saiu um som rouco e incompreensível. Senti uma onda de ternura misturada com raiva: ternura por aquela mulher frágil que sempre me tratou bem; raiva por todos à minha volta acharem que era minha obrigação sacrificar-me.
Nessa noite sonhei que estava presa numa casa sem portas nem janelas. Gritava por ajuda mas ninguém me ouvia.
No dia seguinte acordei com uma decisão tomada. Liguei ao Luís no trabalho:
— Preciso falar contigo hoje à noite. É importante.
Quando ele chegou, sentei-me com ele na sala.
— Luís, eu não posso continuar assim. Estou a perder-me… Já não sei quem sou. Preciso de ajuda ou vou acabar doente também.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos de cansaço.
— O que queres fazer?
— Quero contratar uma cuidadora profissional. Nem que tenhamos de pedir ajuda aos teus irmãos para pagar.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Finalmente assentiu.
No dia seguinte convoquei uma reunião familiar. João e Teresa apareceram contrariados.
— Isto é ridículo — disse João assim que expliquei a minha decisão. — Vais meter uma estranha aqui em casa?
— Não é ridículo — respondi firme pela primeira vez em meses. — É necessário. Ou dividimos todos as tarefas e os custos ou eu saio desta casa.
Teresa ficou pálida.
— Vais abandonar a mãe?
— Não vou abandonar ninguém. Mas não sou escrava nem cuidadora profissional. Tenho direito à minha vida também.
O silêncio caiu pesado sobre nós. Pela primeira vez vi nos olhos deles algo parecido com respeito… ou talvez medo de terem de assumir responsabilidades.
As semanas seguintes foram um turbilhão: entrevistas com cuidadoras, discussões sobre dinheiro, acusações veladas à mesa do jantar. Mas mantive-me firme. Voltei a dar aulas numa escola perto de casa; sentia-me viva outra vez ao ouvir as vozes das crianças.
A Dona Amélia parecia mais tranquila com a nova cuidadora; até sorriu algumas vezes quando lhe liam histórias ou lhe faziam companhia no jardim.
O Luís demorou a perdoar-me por “quebrar” a tradição familiar do sacrifício silencioso. Mas aos poucos percebeu que eu estava mais feliz e saudável — e isso refletiu-se também no nosso casamento.
Hoje olho para trás e vejo aquela Marta exausta e submissa como uma estranha distante. Sei que muitos me julgaram egoísta; outros disseram que fui corajosa. Eu só sei que precisei escolher entre desaparecer ou lutar por mim mesma.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao papel de cuidadoras invisíveis? Quantas sacrificam sonhos e saúde sem ninguém reparar? Será egoísmo cuidar de nós próprias… ou será esse o primeiro passo para sermos realmente livres?