Não sou cuidadora: A minha luta por uma vida própria

— Maria, tens de perceber que a tua sogra não tem mais ninguém! — gritou o António, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do café frio e do pão amanhecido. Eu olhava para ele, sentada à ponta da mesa, com as mãos trémulas a apertarem a caneca. O relógio marcava sete da manhã, mas o peso daquela conversa fazia parecer que já era noite.

— E eu? Eu não conto? — perguntei, a voz quase sumida, mas carregada de uma raiva surda que me queimava por dentro. — Tenho de deixar o meu trabalho, os meus sonhos, porque a tua mãe precisa de alguém?

António desviou o olhar, mas não respondeu. O silêncio dele era mais cruel do que qualquer palavra. Sabia que ele se sentia culpado, mas também sabia que era mais fácil empurrar essa responsabilidade para mim. Afinal, eu sempre fui a que cedia, a que fazia tudo para manter a paz.

A minha sogra, Dona Amélia, tinha sofrido um AVC há dois meses. Desde então, precisava de ajuda para tudo: comer, tomar banho, até para se levantar da cama. Os médicos disseram que a recuperação seria lenta e incerta. Os irmãos do António moravam longe e só ligavam de vez em quando, perguntando se estava tudo bem. Mas aparecerem? Nem pensar.

No início, tentei ser forte. Organizei horários, pedi licença no trabalho durante duas semanas e dediquei-me à Dona Amélia como se fosse minha mãe. Mas rapidamente percebi que aquilo não era sustentável. As noites eram passadas em claro, ouvindo-a chamar por mim ou choramingar baixinho. Durante o dia, sentia-me um fantasma na minha própria casa.

Uma tarde, enquanto lhe dava banho, ela agarrou-me o braço com força e murmurou:

— Tu não gostas de mim, pois não?

Fiquei gelada. Não era verdade — ou talvez fosse. Gostava dela como se gosta de alguém que faz parte da nossa vida por obrigação e não por escolha. Mas naquele momento, só consegui sorrir e dizer:

— Claro que gosto, Dona Amélia.

À noite, chorei baixinho no quarto para não acordar o António. Sentia-me presa numa armadilha sem saída. O meu trabalho como professora primária era mais do que um emprego; era a minha paixão, o meu escape. Mas agora estava em risco porque todos esperavam que eu sacrificasse tudo pelo bem da família.

Os dias foram passando e a pressão aumentava. António começou a chegar mais tarde do trabalho, evitando-me o olhar. Quando falávamos, era sempre sobre a mãe dele: “Ela precisa disto”, “Ela não pode ficar sozinha”, “Os meus irmãos não podem ajudar”. Nunca sobre mim.

Um sábado à tarde, durante um almoço de família, explodi. Estávamos todos à mesa: António, os irmãos dele — o Jorge e a Ana — e Dona Amélia na cadeira de rodas.

— Não posso continuar assim! — gritei, surpreendendo até a mim própria. — Não sou enfermeira nem cuidadora! Tenho uma vida!

O Jorge olhou-me como se eu tivesse dito uma blasfémia.

— Mas és mulher do António! Tens responsabilidades!

— E vocês? Não são filhos dela? Porque é que sou sempre eu a sacrificar tudo?

A Ana tentou acalmar os ânimos:

— Maria, sabemos que é difícil… Mas tu és tão paciente…

— Não sou paciente! Estou exausta! — respondi com lágrimas nos olhos.

Dona Amélia olhava para mim em silêncio. Pela primeira vez vi nos olhos dela algo diferente — talvez compreensão ou talvez apenas tristeza.

Depois desse almoço, tudo mudou. António ficou ainda mais distante. Passávamos dias sem trocar mais do que duas palavras. Eu sentia-me invisível dentro da minha própria casa.

Uma noite, depois de mais uma discussão silenciosa à mesa do jantar, tomei uma decisão. Liguei ao meu chefe e pedi para voltar ao trabalho na semana seguinte. Não sabia como ia fazer com Dona Amélia, mas sabia que não podia continuar a anular-me.

Quando contei ao António, ele ficou em choque.

— Vais mesmo deixar a minha mãe sozinha?

— Não vou deixá-la sozinha — respondi com firmeza. — Vamos contratar uma cuidadora. E os teus irmãos vão ter de ajudar também.

Ele abanou a cabeça, incrédulo.

— Não temos dinheiro para isso…

— Arranjamos uma solução! Mas eu não vou morrer aos poucos nesta casa!

As semanas seguintes foram um caos. Discussões diárias, olhares de reprovação dos cunhados e até vizinhos que cochichavam quando me viam na rua: “Coitada da Dona Amélia…”. Senti-me julgada por toda a gente.

Mas aos poucos as coisas começaram a mudar. Contratámos uma senhora chamada Rosa para ajudar durante o dia e os irmãos do António passaram a vir aos fins de semana. Voltei ao trabalho e recuperei um pouco de mim mesma.

Ainda assim, nada voltou ao normal. O casamento ficou marcado por mágoas e silêncios. Senti que perdi algo irrecuperável — talvez a confiança ou talvez apenas a ilusão de que podia agradar a todos sem me perder.

Hoje olho para trás e vejo aquela mulher sentada à mesa da cozinha, com medo de dizer “não”. Vejo as noites em claro e as lágrimas escondidas no travesseiro. Pergunto-me quantas mulheres vivem assim todos os dias — sufocadas pelas expectativas dos outros, esquecendo-se de si próprias.

Será egoísmo escolhermos a nossa felicidade? Ou será coragem finalmente dizermos basta? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.