“Não quero viver aqui!” – Como a minha sogra destruiu o nosso lar

— Não quero viver aqui! — gritei, com a voz embargada, enquanto olhava para o Tiago, que se encolhia no sofá, evitando o meu olhar. O cheiro a tinta fresca misturava-se com o frio húmido que entrava pelas janelas mal vedadas da nova casa. Era suposto ser o início de uma nova etapa, mas tudo o que sentia era um vazio imenso e uma raiva surda.

A Dona Lurdes, minha sogra, estava sentada à mesa da cozinha, a bebericar um chá como se fosse dona do mundo. — Filha, tu vais ver que isto é só uma fase. Aqui tens espaço, sossego… e estamos todos perto. — O tom paternalista dela fazia-me ferver por dentro. Não era minha mãe, nunca seria. E, no entanto, ali estava ela, a decidir por mim.

Tiago suspirou. — Ana, já falámos sobre isto. Não conseguimos pagar um T2 em Lisboa. A minha mãe só quis ajudar…

Ajuda? Era isso que ele chamava a esta prisão? Uma casa nos subúrbios de Loures, longe do meu trabalho, dos meus amigos, da minha vida. Tudo porque a Dona Lurdes conhecia o senhorio e conseguiu um preço “imperdível”.

Na primeira noite ali, chorei baixinho na casa de banho para não acordar o nosso filho, o Martim. O Tiago fingiu não ouvir. Talvez fosse mais fácil assim.

Os dias seguintes foram um desfile de caixas por abrir e promessas quebradas. O Tiago chegava tarde do trabalho e eu ficava sozinha com o Martim, tentando convencê-lo de que aquela casa era “fixe”, enquanto por dentro me sentia cada vez mais sufocada.

A Dona Lurdes aparecia todos os dias. Trazia pão quente, dava palpites sobre a decoração e criticava discretamente as minhas escolhas. — Não achas que estas cortinas são muito escuras? O Martim precisa de luz! — dizia ela, mexendo nos meus pertences como se fossem dela.

Uma tarde, depois de mais uma visita inesperada da sogra, explodi com o Tiago:

— Isto não é vida! Eu não aguento mais! A tua mãe está sempre aqui, não tenho privacidade…

Ele levantou as mãos em sinal de defesa. — Ela só quer ajudar! E tu sabias que íamos precisar dela para tomar conta do Martim quando voltares ao trabalho.

— Eu não pedi nada disto! — gritei. — Eu queria ficar em Lisboa! Tu prometeste que íamos decidir juntos!

O silêncio caiu entre nós como uma sentença. O Martim entrou na sala com um desenho na mão e olhou para nós, assustado.

As semanas passaram e a tensão só aumentava. Comecei a evitar a Dona Lurdes, mas ela parecia adivinhar os meus horários. Um dia cheguei a casa e encontrei-a a arrumar as minhas gavetas.

— O que está a fazer? — perguntei, tentando controlar as lágrimas.

Ela sorriu, como se nada fosse. — Só estava a ajudar-te a organizar isto tudo. Tu tens tanto trabalho…

Senti-me invadida, humilhada. Liguei à minha mãe e chorei durante meia hora ao telefone.

— Ana, tens de falar com o Tiago — disse ela. — Não podes deixar que te apaguem assim.

Tentei. Mas cada conversa acabava em discussão. O Tiago estava exausto do trabalho e eu exausta da solidão e da sensação de não pertencer ali.

No Natal, a Dona Lurdes decidiu organizar tudo em nossa casa. Vieram os tios, os primos, até vizinhos que eu mal conhecia. Senti-me uma estranha na minha própria sala.

Depois do jantar, fui apanhar ar à varanda. O Tiago veio ter comigo.

— Ana… desculpa. Eu sei que isto não era o que querias.

Olhei para ele com lágrimas nos olhos.

— Não é só a casa, Tiago. É tudo. Sinto que perdi quem sou. Sinto-me sozinha mesmo quando estamos juntos.

Ele tentou abraçar-me, mas eu afastei-me.

— Não sei se consigo continuar assim — sussurrei.

As discussões tornaram-se rotina. O Martim começou a perguntar porque é que estávamos sempre zangados. A Dona Lurdes continuava a aparecer sem avisar, trazendo bolos e conselhos não solicitados.

Um dia cheguei mais cedo do trabalho e ouvi vozes na cozinha. Era a Dona Lurdes ao telefone com alguém:

— Eu disse logo ao Tiago que ela não ia aguentar isto… Mas ele é tão mole! Se fosse comigo já tinha posto ordem na casa!

Senti uma raiva tão grande que quase desmaiei. Saí porta fora sem dizer nada e fui dar uma volta pelo bairro. Olhei para as casas todas iguais, para as ruas sem alma e perguntei-me como tinha ido ali parar.

Nessa noite confrontei o Tiago:

— A tua mãe acha que manda aqui! E tu deixas!

Ele explodiu:

— E tu achas que és melhor do que ela? Sempre insatisfeita! Nunca nada está bem!

Chorei até adormecer no sofá.

Os meses passaram e fui-me apagando aos poucos. Deixei de convidar amigos, deixei de sonhar com viagens ou fins-de-semana fora. Só queria paz.

Um dia o Martim ficou doente e precisei mesmo da ajuda da Dona Lurdes. Ela veio sem hesitar e cuidou dele como se fosse dela própria. Pela primeira vez agradeci-lhe sinceramente.

Mas isso não apagou tudo o resto.

Hoje escrevo esta história sentada na mesma sala onde tudo começou. O Tiago está no quarto com o Martim; eu estou aqui sozinha com os meus pensamentos.

Pergunto-me: quantas famílias são destruídas por decisões tomadas sob pressão? Quantas mulheres perdem a voz dentro das suas próprias casas?

Será possível reconstruir a confiança depois de tanta mágoa? Ou será este o preço de tentar agradar a todos menos a nós próprios?