Não Quero Acabar Sem-Teto na Velhice: O Pedido Impossível da Minha Nora

— Maria, precisamos conversar. — A voz da Andreia ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da tarde como uma faca afiada. Eu sabia que não vinha coisa boa. Ela nunca me chamava de lado para falar de trivialidades.

Sentei-me à mesa, as mãos trêmulas segurando a chávena de café já frio. O relógio de parede marcava quatro da tarde, mas o peso no meu peito fazia parecer noite cerrada. Andreia olhou-me nos olhos, sem rodeios:

— A casa está parada há anos. O João não aguenta mais ver os miúdos a dormir todos juntos na sala. Já pensámos em tudo, mas só há uma solução: a senhora vender esta casa e ajudar-nos a terminar a nossa.

Senti um frio na espinha. Aquela casa era o meu mundo. Foi ali que criei o João, depois de o meu marido ter morrido num acidente na fábrica de cortiça. Cada parede guardava memórias: os risos do João a correr pelo corredor, as noites em claro quando ele teve sarampo, os natais com a família toda reunida.

— Andreia, eu… — tentei falar, mas ela interrompeu:

— Não é justo ficarmos assim, apertados, quando a senhora tem esta casa enorme só para si. O João é filho único, sempre foi tão bom para si… Agora é a sua vez de ajudar.

As palavras dela eram como pedras atiradas ao meu coração. Senti-me egoísta e ao mesmo tempo injustiçada. Eu sempre ajudei o João como pude: paguei-lhe os estudos, ajudei quando nasceu o primeiro neto, fiquei com as crianças quando eles precisaram. Mas vender a minha casa? Onde iria eu morar? Aos 68 anos, com uma reforma que mal chega para as contas?

Naquela noite, não consegui dormir. Oiço o vento bater nas janelas e penso no que seria deixar tudo para trás. Lembro-me do João em pequeno, a pedir-me para lhe contar histórias antes de dormir. Sempre prometi protegê-lo do mundo. Mas agora era ele quem precisava de mim — ou era Andreia quem precisava?

No dia seguinte, João veio sozinho. Sentou-se ao meu lado no sofá, cabisbaixo.

— Mãe… desculpa a Andreia ter sido tão direta ontem. Mas estamos mesmo aflitos. Eu sei que é pedir muito, mas… — Ele não terminou a frase. Os olhos dele estavam vermelhos, como se tivesse chorado.

— João, tu sabes o quanto eu te amo. Mas esta casa é tudo o que eu tenho. Se eu vender, para onde vou? Achas justo eu acabar num lar de idosos ou num apartamento minúsculo?

Ele ficou em silêncio. Ouvia-se apenas o tic-tac do relógio e o som distante das crianças a brincar na rua.

— Podias vir morar connosco — sugeriu ele, hesitante.

Ri-me amargamente.

— Numa casa inacabada? Ou num T1 com quatro pessoas? Não sejas ingénuo, filho.

Ele baixou ainda mais a cabeça.

— A Andreia acha que é o melhor para todos… — murmurou.

— E tu? O que achas?

Ele não respondeu.

Os dias passaram e senti-me cada vez mais isolada. Andreia deixou de me cumprimentar quando vinha buscar os miúdos. Até os meus netos pareciam mais distantes, como se sentissem a tensão no ar. No café da vila, começaram os cochichos:

— Ouviste? A Maria do Carmo não quer ajudar o filho… — dizia a Dona Emília à D. Teresa.

Senti-me julgada por todos. Será que estava mesmo a ser egoísta? Passei noites em claro a fazer contas: se vendesse a casa, talvez desse para comprar um apartamento pequeno e ainda ajudar o João. Mas e se ficasse doente? E se precisasse de cuidados? Quem olharia por mim?

Uma tarde, fui buscar os netos à escola. O mais velho, o Tiago, perguntou:

— Avó, porque é que a mãe está sempre zangada contigo?

O nó na garganta apertou ainda mais.

— Às vezes os adultos têm problemas difíceis de resolver, querido — respondi, tentando sorrir.

Cheguei a casa e chorei sozinha na cozinha. Senti-me velha, descartável, como se já não tivesse lugar na vida deles.

Uma semana depois, Andreia apareceu à porta com uma proposta escrita num papel: se eu vendesse a casa e lhes desse metade do dinheiro, eles prometiam cuidar de mim até ao fim dos meus dias. Era quase um contrato informal de família.

— Não confias em nós? — perguntou ela, magoada quando hesitei.

— Não é isso… É medo do futuro — respondi.

Ela levantou-se abruptamente:

— Então nunca vais confiar em mim! Sempre fui tratada como uma estranha nesta família!

A porta bateu com força. Fiquei ali sentada, sozinha outra vez.

No domingo seguinte, fui à missa pedir orientação. O padre António ouviu-me em silêncio e disse apenas:

— Maria do Carmo, ninguém pode exigir de si aquilo que põe em risco a sua dignidade e segurança. O amor de mãe não deve ser moeda de troca.

Saí da igreja com o coração pesado mas decidido: não podia ceder à pressão. No jantar de família daquele dia, enfrentei-os:

— Eu amo-vos muito, mas não vou vender a minha casa. Preciso dela para viver com dignidade até ao fim dos meus dias. Espero que um dia compreendam.

Andreia levantou-se da mesa sem dizer palavra. João ficou sentado, olhos marejados de lágrimas.

Os meses passaram e as feridas demoraram a sarar. A relação com Andreia nunca voltou ao que era. Com o tempo, João percebeu o meu lado e voltou a visitar-me com mais frequência — às vezes sozinho, outras vezes com os netos.

Hoje olho para esta casa cheia de memórias e pergunto-me: será que fiz bem? Até onde deve ir o sacrifício de uma mãe? Será egoísmo querer envelhecer com dignidade? E vocês — o que fariam no meu lugar?