«Não há berço, não há trocador, nem sequer um biberão» – O regresso de uma mãe ao caos

«Como é que é possível, José? Como é que chegámos aqui?» – perguntei, com a voz embargada, enquanto olhava para o quarto vazio onde deveria estar o berço do nosso filho. O eco das minhas palavras parecia gozar comigo. O silêncio dele era ensurdecedor.

Tinha acabado de chegar do hospital, com o pequeno Tomás nos braços, ainda a cheirar a leite e esperança. O parto fora difícil, mas sobrevivi à dor com a ideia de que, ao chegar a casa, tudo estaria pronto para o início da nossa nova vida. Mas assim que entrei no apartamento, fui recebida por uma sala desarrumada, roupa espalhada pelo chão e um quarto de bebé vazio. Não havia berço. Não havia trocador. Nem sequer um biberão limpo. Senti-me traída por alguém em quem confiava mais do que em mim própria.

José apareceu à porta do quarto, com o telemóvel na mão e os olhos vermelhos de cansaço. «Desculpa, Marta… Eu… O trabalho…» – balbuciou, sem conseguir encarar-me.

«O trabalho? Achas que o trabalho é desculpa para isto?» – atirei-lhe, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Tomás começou a chorar, talvez a sentir a tensão no ar. Sentei-me na cama improvisada e abracei-o com força.

Os dias seguintes foram um borrão de noites mal dormidas e discussões abafadas. A minha mãe ligava todos os dias: «Filha, precisas de ajuda? Queres que vá aí?» Mas eu recusava sempre. Não queria admitir que estava a falhar logo no início. Não queria dar razão à minha sogra, que sempre disse que eu era demasiado independente para ser boa mãe.

José chegava tarde a casa, sempre com desculpas novas: reuniões intermináveis, prazos apertados, trânsito caótico na Segunda Circular. Eu sentia-me cada vez mais sozinha naquele apartamento minúsculo de Benfica, rodeada de fraldas sujas e dúvidas maiores do que eu.

Uma noite, depois de Tomás finalmente adormecer ao meu colo, sentei-me na varanda e deixei-me ir num choro silencioso. Oiço ainda hoje as palavras que sussurrei para mim própria: «Será que estou a falhar? Será que ele vai crescer a sentir-se tão sozinho como eu me sinto agora?»

No dia seguinte, decidi pedir ajuda. Liguei à minha mãe. Ela chegou pouco depois do almoço, com um saco cheio de comida caseira e um sorriso cansado mas genuíno. «Vá lá, Marta… ninguém nasce ensinado. Nem tu nem o José.»

Foi ela quem me ajudou a montar o berço – peça por peça, entre risos nervosos e lágrimas teimosas. Quando José chegou a casa naquela noite e viu o quarto finalmente pronto, ficou parado à porta durante uns segundos longos demais.

«Desculpa…», murmurou ele outra vez.

Desta vez não gritei. Sentei-me ao lado dele na cama e deixei o silêncio falar por nós. Senti-lhe o cheiro familiar – mistura de suor e perfume barato – e percebi que também ele estava perdido.

«Sabes», disse-lhe baixinho, «eu também tenho medo.»

Ele olhou para mim pela primeira vez em semanas. «Medo de quê?»

«De não ser suficiente. De não conseguir ser mãe e mulher ao mesmo tempo. De perder-te.»

Ele pegou-me na mão com força. «Eu também tenho medo de te perder… E tenho medo de não saber ser pai.»

Naquele momento percebi que ambos estávamos a lutar contra fantasmas diferentes mas igualmente assustadores.

Os dias seguintes foram menos pesados. A minha mãe vinha ajudar quando podia; a sogra apareceu com um saco de roupinhas antigas do José e uma caixa de bolos secos («Para te dar energia!»). Comecei a aceitar que não tinha de fazer tudo sozinha.

Mas as feridas entre mim e o José não sararam de um dia para o outro. Havia silêncios desconfortáveis à mesa; discussões sobre quem devia levantar-se de noite; acusações veladas sobre quem fazia mais ou menos.

Uma tarde, enquanto embalava Tomás junto à janela aberta, ouvi José ao telefone no corredor:

«Sim, chefe… Eu sei que prometi… Mas a Marta precisa de mim agora… Não posso continuar assim.»

Senti uma onda de alívio misturada com culpa. Ele estava finalmente a escolher-nos? Ou era só mais uma promessa vazia?

Nessa noite, depois de Tomás adormecer cedo (milagre dos milagres!), sentámo-nos os dois na sala escura.

«Queres falar?» – perguntei-lhe.

Ele hesitou antes de responder: «Quero tentar outra vez… Quero ser melhor marido. Melhor pai.»

Abracei-o com força. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança.

Os meses passaram devagarinho. Aprendemos a pedir ajuda – aos pais, aos amigos, até aos vizinhos do lado («Se precisares de açúcar ou de um ombro amigo, bate à porta!»). Aprendemos a rir dos nossos erros: da vez em que pus fraldas ao contrário; da sopa entornada no tapete novo; das noites em claro passadas a ver séries antigas porque Tomás só adormecia com barulho.

Mas também houve recaídas: discussões feias sobre dinheiro («O subsídio parental não chega para tudo!»), ciúmes mal resolvidos («Desde que nasceu o Tomás já não olhas para mim da mesma maneira…»), inseguranças antigas («A tua mãe acha sempre que faz tudo melhor do que eu!»).

Houve dias em que pensei em desistir – fazer as malas e ir para casa da minha mãe até tudo acalmar. Mas depois olhava para Tomás e via nele um bocadinho de cada um de nós: o nariz torto do pai; os olhos grandes da mãe; o sorriso maroto dos avós.

Foi num desses dias maus que percebi: família não é perfeição nem ausência de conflito. Família é continuar a tentar mesmo quando tudo parece perdido.

Hoje olho para trás e vejo quanto crescemos – eu, o José e até o pequeno Tomás. Ainda discutimos por coisas pequenas («Quem deixou as chaves dentro do frigorífico?»), mas aprendemos a pedir desculpa sem vergonha.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem este caos em silêncio? Quantas mães choram sozinhas na varanda enquanto fingem ter tudo sob controlo? E se partilharmos as nossas fragilidades… será que conseguimos ajudar-nos uns aos outros?

E vocês? Já sentiram este vazio? Já tiveram medo de não ser suficientes para quem mais amam?