Não faças isso pelo teu filho – A história de Inês de Coimbra
— Não faças isso pelo teu filho, Miguel. Não mintas a ti próprio — disse-lhe eu, com a voz a tremer, enquanto segurava a chávena de café com tanta força que quase a partia. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que parecia que o ar da cozinha se tinha tornado sólido. O Tiago, o filho dele, estava no quarto ao lado, a ouvir música alta, como sempre fazia quando sentia que algo não estava bem entre nós.
Desde o início, nunca foi fácil. Conheci o Miguel numa noite chuvosa de novembro, num bar pequeno perto da Praça da República, em Coimbra. Eu tinha acabado de sair de uma relação longa e dolorosa, e ele parecia ter as respostas para todas as perguntas que eu nem sabia que tinha. Só mais tarde percebi que ele também carregava perguntas sem resposta — e uma delas tinha nome: Tiago.
O Tiago tinha doze anos quando o conheci. Era um miúdo fechado, de olhar desconfiado, sempre com os fones nos ouvidos e o telemóvel na mão. A mãe dele tinha emigrado para França pouco depois do divórcio, e ele ficara com o pai, mas nunca me pareceu que estivesse realmente ali. Era como se vivesse numa bolha, imune ao mundo à sua volta — e eu era apenas mais um elemento estranho a invadir o seu espaço.
No início tentei tudo. Comprava-lhe livros, fazia bolos ao domingo, convidava-o para ir ao cinema comigo e com o Miguel. Mas ele respondia sempre com monossílabos ou com aquele olhar vazio que me fazia sentir invisível. O Miguel dizia-me para ter paciência, que era uma questão de tempo. “Ele vai habituar-se a ti, Inês. Só precisa de perceber que não vais embora como a mãe dele.” Mas eu sentia-me cada vez mais uma intrusa na minha própria casa.
A minha mãe dizia-me para não me meter em sarilhos. “Essas coisas nunca correm bem, filha. Um homem com um filho nunca vai ser só teu.” Eu odiava ouvir aquilo, mas às vezes dava por mim a pensar se ela não teria razão.
As discussões começaram a surgir por coisas pequenas: quem lavava a loiça, quem ia buscar o Tiago à escola, quem ficava em casa quando ele estava doente. Mas por trás dessas discussões havia sempre algo maior — uma sensação de que eu estava a competir por um lugar que nunca seria meu.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as notas do Tiago — ele tinha chumbado a Matemática outra vez — sentei-me na varanda a fumar um cigarro e perguntei-me se valia a pena continuar. O Miguel veio ter comigo e sentou-se ao meu lado em silêncio. Ficámos assim durante minutos intermináveis.
— Achas que estou a falhar? — perguntei-lhe finalmente.
Ele olhou para mim com aquele ar cansado que eu já conhecia tão bem.
— Não sei… Talvez estejamos todos a falhar uns com os outros.
Foi nessa noite que percebi que o amor não era suficiente. Que havia feridas antigas naquela casa que eu não podia curar com bolos ou palavras doces.
O tempo passou e as coisas não melhoraram. O Tiago começou a chegar cada vez mais tarde a casa, trazia amigos estranhos e cheirava a tabaco. O Miguel tentava impor regras, mas acabava sempre por ceder. Eu sentia-me cada vez mais impotente e distante dos dois.
Um dia, encontrei uma mensagem no telemóvel do Tiago. Era da mãe dele: “Quando vens visitar-me? Sinto tanto a tua falta.” Senti uma pontada no peito — não de ciúme, mas de tristeza. Percebi que eu nunca seria suficiente para preencher aquele vazio.
Nessa noite, tentei falar com o Miguel.
— Ele precisa da mãe — disse-lhe eu.
— E eu? E tu? Não somos família?
— Somos… mas não somos tudo.
O Miguel levantou-se abruptamente e saiu de casa sem dizer nada. Fiquei sozinha na sala, a olhar para as fotografias na estante: nós os três num piquenique no parque verde do Mondego; o Tiago ainda pequeno ao colo do pai; eu e o Miguel num casamento de amigos, felizes como se nada pudesse tocar-nos.
Comecei a sentir raiva — dele, do Tiago, de mim própria por ter acreditado que podia ser diferente. Lembrei-me das palavras da minha mãe: “Um homem com um filho nunca vai ser só teu.” Mas será que alguma vez quis ser só dele?
Os meses seguintes foram um arrastar de dias iguais: silêncios pesados à mesa do jantar, portas fechadas com força, olhares evitados nos corredores da casa. O Miguel tentava manter as aparências, mas eu via-o cada vez mais distante — como se estivesse sempre à espera de um desastre iminente.
Uma noite ouvi o Tiago a chorar no quarto. Hesitei antes de bater à porta.
— Posso entrar?
Ele não respondeu, mas entreabri a porta mesmo assim. Estava sentado na cama, com as mãos a tapar o rosto.
— O que se passa?
Ele olhou para mim com os olhos vermelhos.
— Não gosto disto… Não gosto desta casa… Não gosto de ti!
As palavras caíram como pedras. Senti-me pequena, inútil. Saí do quarto sem dizer nada.
No dia seguinte liguei à minha mãe.
— Mãe… acho que não aguento mais.
Ela suspirou do outro lado da linha.
— Filha… às vezes amar alguém significa saber quando partir.
Mas eu não queria partir. Queria lutar — por mim, pelo Miguel, até pelo Tiago. Mas quanto mais lutava, mais me perdia.
O ponto de rutura chegou numa tarde de verão. O Tiago desapareceu depois das aulas e ninguém sabia dele. O Miguel entrou em pânico; ligámos para todos os amigos dele, percorremos as ruas da cidade à procura dele. Só apareceu à meia-noite, bêbado e zangado com o mundo inteiro.
Nessa noite houve gritos, lágrimas e portas batidas. O Miguel culpou-me por não ter sido mais firme; eu culpei-o por nunca me ter deixado entrar verdadeiramente na vida deles; o Tiago culpou-nos aos dois por tudo o que lhe faltava.
No dia seguinte fiz as malas e fui para casa da minha mãe. Passei dias inteiros sem sair do quarto, a pensar em tudo o que tinha acontecido — e no que poderia ter sido diferente.
O Miguel tentou falar comigo várias vezes. Mandou mensagens, ligou-me, apareceu à porta da minha mãe com flores e promessas de mudança. Mas eu sabia que nada mudaria enquanto ele não enfrentasse os próprios fantasmas — e enquanto eu não aprendesse a aceitar os meus limites.
Passaram-se meses até voltarmos a falar cara a cara. Encontrámo-nos num café perto do rio Mondego. Ele parecia mais velho; eu sentia-me mais cansada.
— Desculpa — disse ele finalmente. — Por tudo.
Eu sorri tristemente.
— Não faças isso pelo teu filho… nem por mim. Faz isso por ti próprio.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento no centro de Coimbra. Às vezes encontro o Tiago na rua; cumprimentamo-nos com um aceno tímido, como dois estranhos que partilharam uma casa durante algum tempo mas nunca chegaram a ser família.
Pergunto-me muitas vezes se poderia ter feito algo diferente — se poderia ter amado mais ou melhor. Mas talvez haja pessoas destinadas a serem apenas capítulos breves na nossa vida… E vocês? Acham que é possível amar verdadeiramente alguém que nunca deixou de ser um estranho?