“Não és uma estranha, és a esposa!” – Uma semana antes do aniversário que mudou tudo
— Não és uma estranha, és a esposa! — O tom da minha sogra ecoou pela cozinha, cortando o ar como uma faca afiada. Eu estava de costas para ela, a mexer o arroz, mas as mãos começaram a tremer. O cheiro do refogado misturava-se ao nó na minha garganta. Era uma terça-feira cinzenta, e faltava exatamente uma semana para o meu décimo aniversário de casamento com o Rui.
A casa estava cheia de vozes: o Rui a falar alto com o irmão na sala, a minha filha Inês a pedir ajuda com os trabalhos de casa, e a minha sogra, Dona Lurdes, a supervisionar tudo como se fosse a dona do mundo. Eu sentia-me uma empregada invisível, sempre a tentar agradar, sempre a tentar não incomodar. Mas naquele dia, as palavras dela atingiram-me de uma forma diferente.
— Não percebo porque é que ainda te sentes de fora — continuou ela, sem sequer olhar para mim. — Já devias saber o teu lugar nesta família.
O meu lugar. Que lugar era esse? O da mulher que faz tudo em silêncio? O da mãe que nunca se queixa? O da nora que engole sapos para evitar discussões?
Lembrei-me do início com o Rui. Conhecemo-nos na faculdade em Coimbra. Ele era divertido, espontâneo, fazia-me sentir especial. Quando me pediu em casamento, prometeu-me uma vida diferente daquela que eu via em casa dos meus pais: uma mãe cansada e um pai ausente. Mas, dez anos depois, percebi que estava a repetir a história.
Naquela noite, depois do jantar, sentei-me no sofá com o Rui. Ele estava colado ao telemóvel.
— Rui, posso falar contigo?
Ele nem levantou os olhos.
— Diz lá.
— Achas que eu faço parte desta família?
Ele suspirou.
— Outra vez isso? Tu complicas tanto as coisas… A minha mãe só quer ajudar.
— Ajudar? Rui, ela faz-me sentir uma intrusa na minha própria casa!
Ele encolheu os ombros.
— Não ligues. Ela é assim com toda a gente.
Mas eu ligava. Ligava porque todos os dias eram iguais: acordar cedo para preparar os pequenos-almoços, levar a Inês à escola, trabalhar oito horas num escritório onde ninguém sabia sequer o meu nome completo, voltar para casa e ser recebida por críticas veladas e olhares de desdém.
Na quarta-feira, Dona Lurdes apareceu mais cedo do que o costume. Trouxe um bolo para “ajudar” com os preparativos do aniversário de casamento.
— Fiz o bolo de laranja que o Rui gosta tanto — disse ela, pousando-o na bancada com um sorriso vitorioso.
Eu agradeci, mas por dentro sentia-me esmagada. Era sempre assim: tudo girava à volta do Rui. As preferências dele, os horários dele, as vontades dele. E eu? Quando foi a última vez que alguém me perguntou do que eu gostava?
À noite, enquanto lavava a loiça sozinha — porque Dona Lurdes já tinha ido embora e o Rui estava cansado demais para ajudar — comecei a chorar baixinho. Não queria que a Inês me ouvisse. Mas ela apareceu na cozinha sem fazer barulho e abraçou-me pelas costas.
— Mãe, estás triste?
Limpei as lágrimas rapidamente.
— Não, filha. Só estou cansada.
Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e sérios.
— Eu gosto muito de ti assim como és.
Aquelas palavras foram um bálsamo. Mas também me fizeram pensar: será que quero que a Inês cresça a achar normal uma mãe triste e invisível?
Na quinta-feira, fui trabalhar com os olhos inchados. A minha colega Mariana percebeu logo.
— Está tudo bem contigo?
Hesitei antes de responder. Nunca fui de partilhar problemas pessoais no trabalho.
— Só estou um bocado em baixo — murmurei.
Ela puxou-me para um café fora do escritório à hora de almoço.
— Olha, desculpa meter-me… mas tu tens de pensar mais em ti. Não podes viver só para os outros.
As palavras dela ficaram-me a ecoar na cabeça o resto do dia. E se ela tivesse razão? E se eu tivesse deixado de existir para mim mesma?
Na sexta-feira à noite houve mais um jantar de família. O irmão do Rui trouxe a namorada nova, a Sofia. Ela era extrovertida e falava alto, ria-se sem pudor. Dona Lurdes olhou-a de cima a baixo e fez um comentário venenoso sobre o vestido curto dela. Sofia respondeu-lhe com um sorriso:
— Gosto de me sentir bem comigo mesma.
Fiquei a pensar na coragem dela. Porque é que eu nunca conseguia responder assim?
No sábado acordei cedo e fui correr sozinha pela primeira vez em meses. Senti o vento frio na cara e as pernas pesadas no início, mas depois veio uma leveza estranha: pela primeira vez em muito tempo estava a fazer algo só para mim.
Quando voltei para casa, Dona Lurdes já lá estava outra vez. Estava sentada à mesa da cozinha com o Rui e discutiam detalhes da festa do nosso aniversário de casamento como se eu não existisse.
— A Ana pode fazer as entradas — dizia ela. — E tu tratas dos vinhos.
Sentei-me devagar à mesa.
— E se este ano não fizermos festa nenhuma? — perguntei baixinho.
O silêncio caiu como uma bomba. Rui olhou para mim como se eu tivesse dito um disparate.
— Como assim? Toda a gente espera esta festa!
— Eu não quero — disse finalmente. — Estou cansada de fingir que está tudo bem quando não está.
Dona Lurdes bufou.
— Lá estás tu com os teus dramas…
Levantei-me da mesa e fui fechar-me no quarto. Senti-me culpada por magoar toda a gente, mas ao mesmo tempo havia uma pequena chama dentro de mim: talvez fosse altura de pensar em mim pela primeira vez em anos.
No domingo à noite, depois de pôr a Inês na cama, sentei-me com o Rui na varanda.
— Rui… precisamos mesmo de conversar.
Ele olhou-me finalmente nos olhos.
— O que é que se passa contigo?
Respirei fundo.
— Sinto-me invisível nesta casa. Sinto que tudo gira à tua volta e à volta da tua mãe. Eu deixei de existir para mim mesma há muito tempo… E não quero isto para mim nem para a nossa filha.
Ele ficou calado durante muito tempo. Depois levantou-se e foi fumar um cigarro sem dizer nada.
Na segunda-feira decidi faltar ao trabalho e fui passear sozinha até à praia da Figueira da Foz. Sentei-me na areia fria e escrevi no meu diário:
“Quero voltar a ser dona da minha vida. Quero ser vista, ouvida e respeitada. Quero mostrar à Inês que ser mulher não é sinónimo de sacrifício silencioso.”
Quando voltei para casa nessa noite, tomei uma decisão: ia procurar ajuda psicológica e começar a pôr limites à Dona Lurdes e ao Rui. Ia começar devagarinho — talvez dizendo “não” mais vezes, talvez saindo mais sozinha ou retomando hobbies antigos — mas ia começar por algum lado.
Na véspera do nosso aniversário de casamento sentei-me com toda a família à mesa e disse calmamente:
— Este ano não vai haver festa. Preciso de tempo para mim e para pensar no que quero realmente da minha vida.
Dona Lurdes ficou escandalizada; Rui ficou zangado; Inês sorriu-me em silêncio. Pela primeira vez em muitos anos senti-me leve — como se tivesse tirado um peso enorme dos ombros.
Agora escrevo estas palavras já passaram alguns meses desde aquele dia decisivo. Ainda há dias difíceis; ainda há discussões; ainda há momentos em que me sinto sozinha ou incompreendida. Mas pela primeira vez sinto que estou no caminho certo — o caminho de volta a mim mesma.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem assim — invisíveis nas suas próprias casas? Quantas têm coragem de dizer basta? E vocês… já sentiram isto alguma vez?