“Não és mãe se não estás em casa!” – A minha luta entre família e sonhos pessoais

“Não és mãe se não estás em casa!” — As palavras do Rui ecoaram pela cozinha, cortando o silêncio como uma faca. Eu estava de costas, a lavar a loiça do jantar, mas senti o peso do olhar dele nas minhas costas. As mãos tremiam-me, não sabia se de raiva ou de tristeza. Olhei para o relógio: eram quase dez da noite. Os miúdos já dormiam, e eu sentia-me exausta, mas não era só o cansaço físico — era um cansaço que vinha de dentro, de anos a engolir sonhos e vontades.

“Rui, por favor… Não digas isso. Eu sou mãe todos os dias, mesmo quando estou fora de casa.”

Ele bufou, impaciente. “Mãe? Uma mãe está com os filhos, não anda por aí a brincar aos empregos. O que é que te falta aqui? Tens tudo! Casa, filhos, marido… Para quê essa mania de quereres mais?”

Apertei os olhos para não chorar. Não queria dar-lhe esse gosto. Mas dentro de mim, uma voz gritava: “E eu? Onde fico eu no meio disto tudo?”

O Rui nunca entendeu. Casámo-nos novos, eu tinha vinte e dois anos e ele vinte e cinco. Apaixonámo-nos na faculdade, ele em Engenharia Civil, eu em Letras. Sonhávamos alto — ou pelo menos eu sonhava. Ele queria estabilidade, uma casa com jardim e filhos a correr pelo quintal. Eu queria escrever livros, dar aulas, sentir que fazia parte do mundo.

Quando engravidei da Matilde, pus tudo em pausa. “É só por uns anos”, dizia-me a minha mãe. “Depois voltas ao trabalho.” Mas os anos passaram e vieram mais filhos: o Tomás e depois a Leonor. A vida tornou-se uma rotina de fraldas, sopas e idas ao supermercado. O Rui subiu na carreira, eu fiquei em casa.

No início não me importei. Havia alegria nos pequenos momentos: os primeiros passos da Matilde, as gargalhadas do Tomás, as noites em claro com a Leonor ao colo. Mas à medida que os miúdos cresciam, sentia-me cada vez mais invisível. Os meus amigos da faculdade falavam de projetos, viagens, publicações. Eu falava de listas de compras e consultas no centro de saúde.

Um dia, a Matilde chegou da escola com um desenho. Era uma família: o pai com um fato e gravata, a mãe com um avental. “És tu, mamã!” disse ela, orgulhosa. Sorri-lhe, mas por dentro doeu-me. Era só isso que eu era? Um avental?

Comecei a escrever à noite, quando todos dormiam. Pequenos textos, poemas, desabafos. Escondia-os numa gaveta da cómoda. Um dia o Rui encontrou-os.

“O que é isto? Agora escreves diários como as miúdas?”

“São só pensamentos… Preciso de pôr cá para fora.”

“Precisas é de dormir mais e sonhar menos.”

A raiva crescia-me no peito. Sentia-me presa numa casa que já não era minha. Os meus pais diziam-me para ter paciência: “O Rui é bom homem. Não te falta nada.” Mas faltava-me tudo: faltava-me eu.

A gota de água foi numa noite fria de janeiro. O Tomás teve febre alta e fui com ele às urgências do hospital de Santa Maria. Esperei horas sozinha com ele ao colo, enquanto o Rui dizia que tinha uma reunião importante no dia seguinte. No hospital encontrei a Ana, uma antiga colega da faculdade — agora jornalista num jornal nacional.

“Mariana! Que surpresa! Então e tu? Ainda escreves?”

Senti vergonha de responder. “Agora escrevo pouco… Os miúdos ocupam-me o tempo todo.”

Ela sorriu com ternura. “Nunca deixes de escrever. Fazes falta.”

Naquela noite decidi que tinha de mudar.

Comecei por procurar trabalho — primeiro part-time numa biblioteca municipal em Odivelas. O Rui ficou furioso.

“E quem é que vai buscar os miúdos à escola? Quem faz o jantar? Achas que isto é vida?”

“É a minha vida também!” gritei-lhe pela primeira vez em anos.

Os meses seguintes foram um inferno. O Rui fazia questão de me lembrar todos os dias que estava a falhar como mãe e mulher. A Matilde chorava porque eu já não estava sempre em casa quando chegava da escola. O Tomás fazia birras ao jantar. A Leonor começou a fazer xixi na cama outra vez.

A minha mãe ligava-me: “Filha, pensa bem… Não estragues o teu casamento por um capricho.”

Mas já não era capricho — era sobrevivência.

Na biblioteca conheci pessoas novas: a Dona Emília, viúva há vinte anos mas cheia de histórias para contar; o Pedro, estudante universitário apaixonado por poesia; a Sofia, mãe solteira que lutava todos os dias para dar uma vida melhor à filha.

Comecei a sentir-me viva outra vez.

Um dia recebi um convite para participar numa tertúlia literária em Lisboa. O Rui nem quis ouvir falar disso.

“Vais deixar os miúdos outra vez? Isto está a passar dos limites!”

“Eles precisam de uma mãe feliz, não de uma mártir!” respondi-lhe com lágrimas nos olhos.

Nessa noite dormi no sofá. Senti-me sozinha como nunca antes — mas também livre.

A tertúlia foi um sucesso. Li um dos meus textos e recebi aplausos sinceros. Pela primeira vez em muitos anos senti orgulho em mim própria.

Quando cheguei a casa tarde nessa noite, encontrei o Rui à minha espera na sala.

“Ou escolhes a tua família ou escolhes essa mania dos livros.”

Olhei-o nos olhos e percebi que já não tinha medo dele — nem da solidão.

“Eu escolho ser eu própria.”

Os meses seguintes foram duros. Separámo-nos. Os miúdos sofreram — claro que sofreram — mas aos poucos adaptaram-se à nova rotina: uma semana comigo no pequeno apartamento alugado em Benfica, outra semana com o pai na casa antiga.

Houve noites em que chorei até adormecer, cheia de dúvidas e culpas. Mas também houve manhãs em que acordei com vontade de viver outra vez.

Voltei a estudar à noite na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publiquei alguns contos numa revista literária local. A Matilde começou a escrever poemas comigo; o Tomás apaixonou-se por futebol; a Leonor aprendeu finalmente a dormir sem medos.

Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi — mas também tudo o que ganhei.

Às vezes pergunto-me: será egoísmo escolhermos ser felizes? Ou será egoísmo pedirem-nos para deixarmos de ser quem somos?

E vocês? Já sentiram que tiveram de escolher entre quem amam e quem são?