Na Sombra da Pausa para Almoço: Quando a Confiança se Vende
— Ó Rui, não te esqueças que hoje és tu que pagas o almoço, está bem? — disse o Américo, já com aquele sorriso de quem sabe que está a pedir um favor, mas também de quem não aceita um não como resposta.
Olhei para ele, cansado, com as mãos ainda sujas de óleo da máquina de corte. O cheiro a ferro e suor misturava-se com o aroma distante do arroz de pato vindo do refeitório. Era mais um dia igual a tantos outros na fábrica de peças automóveis em Setúbal, mas aquele pedido — ou melhor, aquela exigência — soou-me estranho. Eu e o Américo éramos colegas há anos, partilhávamos turnos, cigarros à porta e até confidências sobre as nossas famílias. Mas ultimamente, havia algo nele que me deixava desconfortável. Talvez fosse o modo como desviava o olhar quando falávamos de dinheiro ou aquele riso nervoso sempre que alguém mencionava prémios de produtividade.
— Claro, Américo. Hoje sou eu — respondi, tentando não mostrar o incómodo. Afinal, era só um almoço. O que podia correr mal?
No refeitório, sentámo-nos à mesa habitual: eu, o Américo, a Dona Lurdes do controlo de qualidade e o Tiago, aprendiz novo que mal dizia uma palavra. O Américo pediu logo dois pratos de arroz de pato e duas cervejas. Olhou para mim e piscou o olho:
— Hoje é à grande, Rui! Aproveita enquanto és tu a pagar.
Senti um aperto no peito. Não era pelo dinheiro — embora cada euro contado fizesse falta lá em casa — mas pela forma como ele se aproveitava da situação. Sorri amarelo e tentei ignorar.
Quando chegou a conta, o Américo levantou-se num salto:
— Vou só ali fora atender uma chamada da minha mulher. Já volto para pagar a minha parte.
Fiquei ali, com a conta na mão e os olhos da Dona Lurdes cravados em mim.
— Ele faz sempre isto, sabes? — murmurou ela, baixinho. — Já me aconteceu duas vezes.
O Tiago encolheu os ombros, como quem já esperava. Paguei tudo, engolindo em seco. Saí para fora e vi o Américo ao telemóvel, rindo-se alto. Quando me viu, fez-me sinal para esperar.
Nesse momento, algo dentro de mim partiu-se. Não era só o dinheiro do almoço; era a confiança, a amizade construída ao longo dos anos. Senti-me usado, traído por alguém que considerava quase família.
À noite, em casa, contei à minha mulher, a Ana.
— Rui, tens de lhe dizer alguma coisa. Não podes deixar que te passem por cima assim — disse ela, com aquela firmeza que só ela tem.
Mas eu hesitava. Sempre fui de evitar conflitos. Cresci num bairro onde se resolvia tudo à pancada ou ao grito; prometi a mim mesmo ser diferente. Mas será que ser diferente era ser ingénuo?
No dia seguinte, entrei na fábrica com o coração apertado. O Américo veio ter comigo logo de manhã.
— Então, Rui! Ontem foi fixe, pá! Amanhã pagas tu outra vez?
Senti o sangue ferver-me nas veias.
— Américo, ontem paguei tudo sozinho. Disseste que ias pagar a tua parte e desapareceste.
Ele riu-se.
— Eh pá, desculpa lá! Esqueci-me completamente! Olha, depois compenso-te.
Mas eu sabia que não ia compensar. E ele sabia que eu sabia.
Durante dias andei amargo. No trabalho já não conseguia olhar para ele da mesma forma. Os outros colegas começaram a notar o ambiente pesado. A Dona Lurdes veio falar comigo ao intervalo.
— Rui, não és o primeiro nem vais ser o último. O Américo é assim desde sempre. Só muda quando alguém lhe faz frente.
Naquela noite não dormi. Revivi todas as conversas com o Américo: as vezes em que lhe emprestei dinheiro para o passe do filho; as vezes em que lhe dei boleia porque dizia estar sem gasolina; as vezes em que defendi o nome dele junto do chefe quando chegou atrasado. Senti-me um tolo.
No sábado seguinte, estava em casa dos meus pais para o almoço de família. O meu irmão mais novo, o Pedro, percebeu logo que algo não estava bem.
— O que se passa contigo? Estás com cara de quem perdeu tudo no casino.
Contei-lhe tudo. Ele riu-se.
— Rui, tu és bom demais para este mundo. Mas tens de aprender a dizer basta. Se não fores tu a impor limites, ninguém vai respeitar-te.
As palavras dele ecoaram na minha cabeça durante todo o fim-de-semana.
Na segunda-feira seguinte tomei uma decisão. Quando chegou a hora do almoço e o Américo se aproximou com aquele ar de quem já estava pronto para mais um golpe, olhei-o nos olhos.
— Hoje cada um paga o seu, Américo. E sobre aquele almoço da semana passada… espero que me devolvas o dinheiro até ao fim do mês.
Ele ficou sem reação durante uns segundos. Depois encolheu os ombros e afastou-se sem dizer nada.
O ambiente ficou estranho durante uns dias. Os outros colegas começaram a vir ter comigo discretamente:
— Fizeste bem, Rui. Já era tempo de alguém lhe pôr um travão — disse-me a Dona Lurdes.
O Tiago sorriu-me pela primeira vez desde que entrou na fábrica.
Com o tempo percebi que não era só eu que tinha sido enganado pelo Américo; todos ali tinham histórias parecidas. Mas ninguém tinha tido coragem de lhe dizer basta.
A relação entre nós nunca mais foi a mesma. O Américo deixou de me falar durante semanas. Depois começou a evitar-me nos corredores e até mudou de turno quando pôde. Senti pena dele — mas mais pena tive de mim próprio por ter deixado chegar as coisas tão longe.
Em casa, a Ana abraçou-me quando lhe contei tudo.
— Estou orgulhosa de ti. Finalmente defendeste-te.
Mas dentro de mim ficou uma ferida difícil de sarar. Não era só pelo dinheiro perdido; era pela inocência roubada, pela amizade traída. Passei a olhar para os colegas com outros olhos — mais atentos, mais desconfiados.
Pergunto-me muitas vezes: será possível confiar verdadeiramente em alguém no trabalho? Ou será que todos temos um preço?
E vocês? Já sentiram este sabor amargo da traição no vosso dia-a-dia? Como lidaram com isso?