Miguel aos 54: Entre a Solidão e o Amor de Madalena

— Miguel, tu não podes continuar assim, sozinho nesta casa enorme! — A voz da minha irmã, Teresa, ecoa pela sala, carregada de preocupação e um certo tom de censura. Olho para ela, sentada no sofá onde a nossa mãe costumava bordar, e sinto o peso de cada palavra.

Respiro fundo. O cheiro do café acabado de fazer mistura-se com o aroma antigo dos móveis de madeira escura. A casa está silenciosa, como sempre desde que a Ana saiu há oito anos. O divórcio foi um corte seco, sem grandes discussões, mas com uma dor surda que nunca me abandonou.

— Teresa, já falámos sobre isto. Não é por falta de companhia que estou sozinho. É por escolha — respondo, tentando manter a voz firme.

Ela revira os olhos. — Escolha? Ou medo? — pergunta, baixinho, quase como se não quisesse ouvir a resposta.

Fico calado. O relógio da parede marca as horas com um tique-taque irritante. Lembro-me de quando a casa estava cheia: os risos dos meus filhos pequenos, as discussões sobre quem ia buscar pão à padaria do senhor Joaquim, os jantares de domingo com toda a família à volta da mesa.

Agora, só o silêncio me faz companhia. E, às vezes, Madalena.

Conheci a Madalena há dois anos, numa aula de pintura na Casa do Povo. Ela tinha acabado de fazer 45 anos e trazia consigo uma energia que me desconcertava. Era divorciada também, mãe de uma rapariga que estudava em Coimbra. Começámos a conversar sobre tintas e pincéis, mas rapidamente passámos para temas mais profundos: os filhos crescidos, os sonhos adiados, as noites longas em que o sono custa a chegar.

— Miguel, tu tens medo de te apaixonar outra vez? — perguntou-me ela uma noite, depois de um jantar improvisado na minha cozinha.

Fiquei sem resposta. Tinha medo, sim. Medo de voltar a perder alguém. Medo de me perder a mim próprio.

A pressão não vinha só da Teresa. O meu filho mais velho, Rui, ligava-me todas as semanas para saber se eu já tinha “reconstruído a vida”. A minha filha Inês mandava mensagens com links para artigos sobre “amor na maturidade”. Até o senhor António da mercearia fazia comentários:

— Ó Miguel, homem sozinho é presa fácil para a tristeza!

Mas ninguém sabia das noites em que me sentava na varanda com um copo de vinho tinto e olhava para as estrelas, sentindo uma paz que nunca tinha sentido durante o casamento. Ninguém sabia das manhãs em que acordava sem pressa, sem discussões sobre contas ou tarefas domésticas.

Madalena percebeu isso antes de todos.

— Sabes que não tens de escolher entre mim e a tua solidão — disse-me ela um dia, enquanto pintávamos juntos um quadro abstrato.

— Como assim?

— Podes gostar de mim e gostar do teu espaço ao mesmo tempo. Não tens de casar comigo para provar nada a ninguém.

Essas palavras ficaram-me gravadas na memória. Mas nem tudo era simples. Houve dias em que Madalena chorou ao meu lado, sentindo-se rejeitada por eu não querer dar o passo seguinte. Houve discussões acesas:

— Achas que eu sou menos mulher por não seres capaz de assumir um compromisso? — gritou ela uma vez, atirando um pincel contra a parede.

Eu não sabia responder. Sentia-me dividido entre o desejo de partilhar a vida e o medo de perder a liberdade conquistada à custa de tanta dor.

A família não ajudava. No último Natal, Teresa fez questão de sentar Madalena ao meu lado à mesa e passou a noite inteira a lançar olhares significativos.

— Vocês fazem um casal tão bonito! — disse ela alto demais, enquanto servia o bacalhau.

Madalena sorriu constrangida. Eu limitei-me a olhar para o prato.

Depois do jantar, Rui puxou-me para o corredor.

— Pai, não podes continuar assim. A mãe já seguiu em frente. Tu também mereces ser feliz.

Quis gritar-lhe que felicidade não era sinónimo de casamento ou companhia constante. Mas calei-me. Sempre fui bom a engolir palavras.

As semanas passaram. Madalena começou a afastar-se. As mensagens tornaram-se mais espaçadas; os convites para pintar juntos rarearam. Senti-lhe a falta como se me tivessem arrancado um pedaço do peito.

Numa tarde chuvosa de março, decidi procurá-la no café onde costumávamos lanchar ao sábado. Ela estava lá, sozinha, com um livro aberto à frente e uma chávena de chá nas mãos trémulas.

— Posso sentar-me? — perguntei.

Ela assentiu em silêncio.

— Madalena… Desculpa se te magoei. Eu…

Ela interrompeu-me:

— Miguel, eu só queria saber se algum dia vais conseguir deixar alguém entrar verdadeiramente na tua vida outra vez.

Fiquei sem resposta. Olhei para as mãos dela — tão pequenas e frágeis — e pensei em tudo o que podia perder se continuasse fechado no meu mundo.

Mas também pensei em tudo o que podia perder se voltasse a abrir portas: a paz das manhãs solitárias, o silêncio confortável da casa vazia, a liberdade de ser apenas eu.

Saí do café com o coração apertado. Passei dias sem conseguir dormir direito. A Teresa ligava todos os dias; o Rui mandava mensagens; até a Inês veio passar um fim-de-semana comigo para “me animar”.

Numa dessas noites insones, sentei-me à secretária e comecei a escrever esta história. Talvez para tentar perceber onde errei; talvez para encontrar respostas que ninguém me conseguia dar.

Hoje faço 54 anos. A casa continua silenciosa. Madalena já não aparece nas aulas de pintura; ouvi dizer que começou a namorar com um professor novo da escola secundária.

Sinto-lhe a falta todos os dias — mas também sinto uma estranha serenidade por ter escolhido o meu caminho.

Será egoísmo querer estar sozinho quando todos esperam que procure companhia? Ou será coragem assumir que nem sempre precisamos de alguém ao nosso lado para sermos felizes?

E vocês? Já sentiram este conflito entre o desejo de partilhar a vida e o medo de perder quem somos?