Mensagens de um Número Desconhecido: O Segredo de Dona Amélia

— Outra vez este número, meu Deus… — sussurrei, olhando para o ecrã do telemóvel, as mãos a tremer. Era já a terceira mensagem naquela semana, sempre com palavras simples, quase infantis: “Espero que o teu dia esteja a correr bem.”

Chamo-me Amélia, tenho 62 anos e moro em Setúbal. Desde que o meu marido, António, morreu há três anos, a solidão tornou-se uma sombra constante na minha casa. A minha filha, Inês, vive em Lisboa e raramente me visita. As nossas conversas são curtas, cheias de silêncios e ressentimentos antigos. Por isso, quando comecei a receber mensagens de um número desconhecido, senti medo — mas também uma estranha esperança.

No início, ignorei. Pensei que fosse engano ou algum esquema qualquer. Mas as mensagens continuavam, sempre gentis, sempre anónimas. “Hoje está sol. Espero que consigas sentir um pouco de alegria.”

Uma noite, já tarde, não aguentei mais:

— Quem és tu? Porque me escreves? — digitei, o coração aos pulos.

A resposta veio quase de imediato: “Desculpa se te incomodo. Só queria saber se estás bem.”

Fiquei acordada até tarde, a pensar em quem poderia ser. Um vizinho? Um antigo amigo? Ou alguém a brincar com os meus sentimentos? No dia seguinte, contei à minha irmã, Teresa, durante o café:

— Achas que devo responder? E se for perigoso?

Ela encolheu os ombros:

— Amélia, tu passas tanto tempo sozinha… Talvez seja só alguém solitário como tu.

As mensagens continuaram. Pequenos gestos de carinho: “Vi uma flor bonita hoje e lembrei-me de ti.” “Se precisares de conversar, estou aqui.” Comecei a responder timidamente. Partilhei memórias da infância, histórias do António, até segredos que nunca contei à Inês. Senti-me viva outra vez.

Mas a minha filha não gostou quando soube:

— Mãe! Tu não sabes quem está do outro lado! E se for alguém perigoso? — gritou ela ao telefone.

— Inês, é só uma pessoa simpática…

— Não acredito que estás a confiar num estranho em vez de falares comigo! — desligou na minha cara.

Chorei nessa noite. Senti-me culpada por confiar mais num desconhecido do que na minha própria filha. Mas como podia explicar-lhe que ela própria era agora uma estranha para mim?

Os dias passaram e as mensagens tornaram-se parte da minha rotina. Até que um dia recebi algo diferente: “Posso pedir-te um favor? Podes encontrar-te comigo?”

O medo voltou. E se a Inês tivesse razão? Mas havia algo naquela mensagem… uma urgência sincera.

Respondi: “Onde?”

“Na esplanada do Jardim do Bonfim. Amanhã às 15h.”

Passei a noite em claro. No dia seguinte, vesti o meu melhor vestido azul — o que o António adorava — e fui ao jardim. Sentei-me numa mesa afastada e esperei.

O tempo parecia não passar. Olhei para cada pessoa que entrava na esplanada: casais de idosos, mães com crianças, jovens distraídos nos telemóveis. Até que vi uma rapariga loira, de olhos castanhos ansiosos, a aproximar-se devagar.

— Dona Amélia? — perguntou ela, hesitante.

Fiquei sem palavras. Não a reconhecia.

— Sou eu… — disse baixinho.

Ela sentou-se à minha frente e sorriu nervosamente.

— O meu nome é Sofia. Trabalho nos CTT ali perto. Há meses que vejo cartas para si… sempre manuscritas, com letras bonitas. Um dia reparei que nunca havia remetente. Perguntei-me quem seria a pessoa que escrevia tanto para si sem nunca receber resposta…

Fiquei confusa:

— Mas eu não recebo cartas há anos…

Sofia corou:

— Eu sei… Porque as cartas nunca chegavam ao destino. Havia um erro no código postal. Fiquei com pena… comecei a guardar algumas e… não sei explicar porquê… senti vontade de lhe escrever eu própria.

O mundo pareceu parar naquele instante.

— Então… foste tu quem me enviou as mensagens?

Ela assentiu:

— Sim. Não queria assustá-la. Só achei que ninguém devia sentir-se tão sozinha.

As lágrimas correram-me pelo rosto sem eu conseguir controlar.

— Obrigada… — sussurrei. — Nem imaginas o quanto precisava disto.

Conversámos durante horas. Sofia contou-me sobre a sua infância difícil em Almada, sobre como também se sentia sozinha desde que perdeu os pais num acidente de carro. Disse-me que as cartas eram da minha filha Inês — ela reconheceu o nome no remetente e percebeu tudo.

O choque foi tão grande que mal consegui respirar.

— A Inês escreveu-me? — perguntei, incrédula.

Sofia tirou da mala um maço de cartas amareladas.

— Estas são para si…

Abri uma ao acaso:

“Mãe,
Desculpa não conseguir dizer isto cara a cara. Sinto tanto a tua falta… Sei que me afastei depois da morte do pai, mas não sei como voltar. Tenho medo de te magoar ainda mais…”

Li cada palavra como se fosse um bálsamo nas feridas do meu coração. Chorei por tudo o que perdemos — pelo tempo calado entre nós, pelas palavras nunca ditas.

Naquela noite liguei à Inês:

— Recebi as tuas cartas.

Silêncio do outro lado.

— Mãe… desculpa…

— Eu também te amo, filha.

Chorámos juntas ao telefone durante minutos intermináveis. Pela primeira vez em anos senti esperança.

Hoje, Sofia faz parte da nossa família. Tornou-se quase como uma filha para mim — e ajudou-me a reencontrar a minha verdadeira filha também.

Às vezes pergunto-me: quantas vidas mudam por causa de pequenos gestos? E quantas pessoas solitárias esperam apenas uma mensagem para voltar a acreditar no amor?