Maternidade: Amor ou Dívida? – Um presente de casamento que mudou tudo

— Mãe, não leves a mal, mas o vosso presente foi… pouco. — As palavras da Mariana ecoaram-me na cabeça como um trovão inesperado numa tarde de verão. Estávamos sentadas à mesa da sala, a loiça do jantar ainda por arrumar, e o silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou.

Olhei para ela, a minha filha, agora mulher feita, recém-casada, com as mãos delicadamente pousadas sobre a toalha de linho que herdou da minha mãe. O olhar dela era firme, mas havia ali uma sombra de mágoa, ou talvez de expectativa não cumprida. Senti o coração apertar-se no peito — como é que chegámos aqui?

— Mariana… — tentei começar, mas a voz saiu-me trémula. — O teu pai e eu demos o que podíamos. Sabes bem como as coisas estão…

Ela desviou o olhar, fitando a janela onde a chuva batia miudinha. — Eu sei, mãe. Mas o Pedro… a família dele deu-nos tanto. E eu… eu só queria sentir que vocês estavam felizes por mim, por nós.

Fiquei sem palavras. O Pedro, o genro perfeito, filho único de uma família abastada de Cascais, tinha recebido os noivos com um cheque generoso e promessas de viagens. Nós demos-lhes um serviço de jantar antigo, com história e amor, mas aparentemente sem valor suficiente para os olhos dela.

Naquela noite, depois de ela sair, sentei-me sozinha na sala escura. O meu marido, António, já ressonava no quarto. Olhei para as fotografias nas prateleiras: Mariana em bebé, Mariana na escola primária, Mariana com o vestido de finalista. Sempre fizemos tudo por ela. Quantas vezes abdiquei de um casaco novo para lhe comprar livros? Quantas noites fiquei acordada quando ela tinha febre? E agora… agora era isto.

No dia seguinte, António percebeu logo que algo não estava bem.

— Que se passa, Rosa? — perguntou ele, enquanto mexia no café.

— A Mariana acha que não demos o suficiente no casamento.

Ele suspirou fundo e abanou a cabeça. — Os tempos mudaram. Agora tudo se mede em dinheiro.

— Mas ela sempre foi tão sensível… — murmurei.

Durante dias tentei afastar aquele peso do peito. No supermercado, ao escolher as maçãs mais baratas; no autocarro para o trabalho; até na missa ao domingo. As palavras dela perseguiam-me: “foi pouco”.

Uma semana depois, a Mariana ligou-me.

— Mãe, podemos falar?

O coração saltou-me ao ouvir a voz dela. Marcámos um café perto do trabalho dela. Quando cheguei, ela já lá estava, impecável como sempre, com o cabelo apanhado e um casaco caro.

— Desculpa se fui dura — começou ela. — Mas senti-me… menosprezada.

— Menosprezada? — repeti, incrédula. — Mariana, demos-te tudo o que tínhamos! Não tens ideia do que custou juntar aquele serviço de jantar… Era da tua avó!

Ela olhou para mim com olhos marejados.

— Eu sei, mãe. Mas às vezes sinto que nunca fui prioridade para vocês. O pai sempre tão ocupado com o trabalho… Tu sempre preocupada com contas e problemas…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Mariana! Sabes quantas vezes deixei de comer carne para tu teres lanche na escola? Sabes quantas noites chorei sozinha porque não podia dar-te mais? E agora dizes-me isto?

Ela baixou a cabeça.

— Não quero discutir… Só queria sentir que sou importante.

Ficámos em silêncio. O barulho das chávenas e das conversas alheias parecia vir de outro mundo.

— Mariana — disse finalmente — tu és tudo para mim. Sempre foste. Mas às vezes parece que só vês o que te falta, não o que tens.

Ela não respondeu. Pagou o café e saiu apressada.

Nessa noite contei tudo ao António.

— Ela não percebe… — disse ele. — Cresceu sem saber o que é passar dificuldades.

— Fomos nós que lhe demos isso…

Os dias passaram e a distância entre nós aumentou. Mariana começou a ligar menos, as visitas rarearam. No Natal, veio jantar connosco mas passou o tempo todo ao telemóvel com o Pedro. O presente dela foi um cabaz gourmet — caro mas impessoal.

Depois do Ano Novo, recebi uma mensagem dela: “Mãe, precisamos falar.”

O coração disparou-me no peito. Fui ter com ela ao apartamento novo deles em Lisboa. Tudo ali cheirava a novo: móveis modernos, quadros minimalistas nas paredes brancas.

— Mãe… — começou ela assim que entrei — eu e o Pedro estamos a pensar mudar-nos para Londres. Ele recebeu uma proposta irrecusável.

Senti o chão fugir-me dos pés.

— Londres? Mas… e nós?

Ela encolheu os ombros.

— É uma oportunidade única para nós dois. E… acho que precisamos de espaço.

Espaço? Depois de tudo? Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos mas engoli-as com esforço.

— Se é isso que queres…

Ela abraçou-me rapidamente e disse:

— Amo-te mãe, mas preciso de viver a minha vida.

Saí dali como quem sai de um funeral. No autocarro de regresso a casa chorei baixinho, olhando pela janela as ruas cinzentas da cidade.

Durante meses ouvi pouco dela. Uma mensagem ocasional, uma chamada rápida nos anos ou no Natal. O António tentava animar-me:

— Ela vai perceber um dia…

Mas eu sentia um vazio enorme dentro de mim. Comecei a duvidar de tudo: teria sido demasiado dura? Teria falhado como mãe?

Um dia recebi uma carta dela — sim, uma carta à moda antiga:

“Mãe,
Sei que te magoei. Londres é fria e distante e às vezes sinto falta do cheiro do teu arroz doce e do som da tua voz ao acordar-me para ir para a escola. Cresci a pensar que precisava de mais do que aquilo que tinha, mas agora percebo que aquilo que me deste foi amor verdadeiro — mesmo quando não era perfeito ou suficiente aos olhos dos outros.
Desculpa por não ter visto isso antes.”

Li aquela carta vezes sem conta. Chorei muito mais do que queria admitir.

Hoje continuo sem saber se alguma vez voltaremos a ser como antes. Mas aprendi que ser mãe é dar sem esperar nada em troca — mesmo quando dói.

Às vezes pergunto-me: será que alguma vez os filhos percebem realmente o peso do amor dos pais? E vocês? Já sentiram esta distância dentro da vossa própria família?