Marcada Pela Vida: O Preço das Minhas Tatuagens
— Não pode entrar, Andreia. As regras são claras. — A voz da diretora ecoou no corredor frio da escola, enquanto eu, com o coração apertado, olhava pela porta de vidro para o auditório onde os meus filhos iam atuar. Oiço o burburinho das outras mães atrás de mim, sussurrando, apontando discretamente para os meus braços cobertos de tatuagens coloridas. Sinto o sangue a ferver-me nas veias, mas engulo em seco e tento sorrir.
— Mas são os meus filhos! Eu só quero vê-los no teatro… — imploro, tentando controlar as lágrimas que ameaçam cair.
A diretora desvia o olhar, desconfortável. — Andreia, já falámos sobre isto. A escola tem uma imagem a manter. Não queremos dar maus exemplos às crianças.
Maus exemplos? Sinto-me esmagada por dentro. Cresci num bairro onde todos se conheciam, onde a minha mãe, Dona Lurdes, era respeitada por todos, mesmo quando o meu pai desapareceu e ela teve de criar três filhos sozinha. Sempre me ensinou a ser forte, a não baixar a cabeça perante ninguém. Mas agora, aqui estou eu, mãe de três, a ser tratada como uma criminosa por ter escolhido marcar no corpo as histórias da minha vida.
Saio da escola com o coração despedaçado. Encosto-me ao muro e espreito pela janela do ginásio. Vejo o Diogo, o mais velho, nervoso no palco. A Leonor e a Matilde acenam para a plateia à procura de mim. Tento sorrir e aceno-lhes de longe, mas sinto-me invisível.
Quando chego a casa, o silêncio pesa. O meu marido, Rui, está sentado à mesa da cozinha com o jornal aberto. Levanta os olhos quando me vê entrar.
— Então? Conseguiste ver o teatro?
— Não me deixaram entrar — respondo, a voz embargada.
Ele suspira e desvia o olhar. — Já te disse que essas tatuagens só te trazem problemas, Andreia.
— Rui, não é justo! Não fiz mal a ninguém! São só desenhos na pele…
— Não são só desenhos! As pessoas não entendem. E tu sabes disso. — A sua voz é dura, mas percebo que é medo. Medo do que os outros vão pensar dele, dos nossos filhos.
A discussão repete-se noite após noite. Rui quer que eu esconda as tatuagens, que use mangas compridas mesmo no verão sufocante de agosto. Diz que assim será mais fácil para todos. Mas eu recuso-me a esconder quem sou.
No dia seguinte, visto uma blusa leve e saio para procurar trabalho. Desde que fui despedida do café onde trabalhava — “Não queremos clientes assustados”, disseram-me — tenho tentado arranjar emprego em todo o lado: supermercados, lojas de roupa, até num salão de beleza. Mas assim que veem os meus braços e pescoço tatuados, mudam logo de tom.
— Lamentamos, mas já temos todas as vagas preenchidas — dizem sempre com um sorriso falso.
Uma vez, numa entrevista para uma loja de brinquedos, a gerente olhou-me de cima a baixo e perguntou:
— Não pensa remover essas tatuagens? Aqui lidamos com crianças…
Saí dali humilhada. Senti-me suja, como se tivesse cometido um crime imperdoável.
Em casa, os meus filhos começam a perceber que algo não está bem. O Diogo chega um dia triste da escola.
— Mãe… disseram que tu és má porque tens tatuagens. Que só os bandidos têm assim.
Ajoelho-me ao lado dele e seguro-lhe as mãos pequenas.
— Olha para mim, filho. As tatuagens não fazem de mim má pessoa. Cada uma destas marcas tem uma história bonita: uma flor para cada um de vocês, um pássaro para a avó Lurdes que já não está cá… São pedaços do meu coração na pele.
Ele sorri timidamente e abraça-me com força. Mas sei que amanhã vai ouvir as mesmas coisas na escola.
A pressão aumenta quando a minha sogra aparece lá em casa sem avisar.
— Andreia, tens de pensar nos teus filhos! Isto não é vida para eles… Já viste o que dizem na rua? Que exemplo estás a dar?
— O exemplo de ser verdadeira comigo mesma! — respondo, cansada de me justificar.
Ela abana a cabeça e murmura algo sobre vergonha e respeito.
As noites tornam-se longas e solitárias. O Rui começa a chegar mais tarde do trabalho. Diz que está cansado das discussões e do olhar dos vizinhos. Sinto-o afastar-se aos poucos.
Um dia, recebo uma carta da escola: “Informamos que devido ao comportamento inadequado da encarregada de educação Andreia Silva e à sua aparência incompatível com os valores da instituição, não será permitida a sua presença em eventos escolares.” Sinto um nó na garganta ao ler aquelas palavras frias.
Decido lutar. Procuro uma advogada amiga da minha mãe e conto-lhe tudo.
— Andreia, isto é discriminação pura! Tens direito a estar presente na vida dos teus filhos — diz ela indignada.
Mas quando tento falar com outras mães na escola, poucas me apoiam. Algumas desviam o olhar; outras dizem baixinho:
— Eu até gosto dela… mas sabes como é… não quero problemas com a direção.
Sinto-me cada vez mais isolada. Até o Rui me pede para desistir:
— Não vale a pena lutar contra toda a gente… Só vais prejudicar os miúdos!
Mas eu não consigo calar-me. Escrevo um post nas redes sociais a contar tudo: as portas fechadas nos empregos, os olhares na rua, o afastamento dos amigos e até da família. Em poucas horas recebo centenas de mensagens: algumas de apoio, outras cheias de ódio.
Uma mulher chamada Carla escreve:
— Obrigada por partilhares! Também sou mãe tatuada e passo pelo mesmo todos os dias…
Mas há quem diga:
— Se quer respeito, devia pensar antes de se marcar assim!
Os dias passam lentos. Continuo sem trabalho e sem poder ver os meus filhos nos eventos escolares. O Rui dorme no sofá cada vez mais vezes. Sinto que estou a perder tudo por ser quem sou.
Numa noite chuvosa, sento-me à janela com uma chávena de chá frio entre as mãos e olho para as minhas tatuagens à luz fraca do candeeiro. Penso em tudo o que perdi: amigos que se afastaram, empregos recusados, até parte da minha família que já não me fala.
Mas penso também no que ganhei: coragem para ser verdadeira comigo mesma; orgulho nas histórias que carrego na pele; amor incondicional pelos meus filhos — mesmo quando o mundo inteiro parece querer separar-nos.
No fundo do coração sei que não sou menos mãe por ter tatuagens. Sei que não sou menos digna de respeito ou amor. Mas será que algum dia Portugal vai aceitar pessoas como eu? Será que vale a pena continuar esta luta sozinha?
E vocês? Acham mesmo que uma mãe se mede pela pele ou pelo coração?