Marcada como Preguiçosa por Escolher a Facilidade: A Minha Luta Entre o Conforto e o Julgamento

— Achas mesmo que precisas disso tudo, Graça? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de desdém, enquanto eu desembrulhava o novo aspirador robô. O cheiro a plástico novo misturava-se com o aroma do café acabado de fazer, mas nada abafava o peso do julgamento no ar.

Olhei para ela, tentando encontrar compreensão no seu rosto enrugado, mas só vi reprovação. — Mãe, trabalhei meses para isto. Não é só um capricho — tentei explicar, mas sabia que as palavras não iam chegar.

Desde pequena que me ensinaram que a vida era feita de sacrifícios. O meu pai acordava às cinco da manhã para ir para a fábrica, a minha mãe passava horas de pé na mercearia. Eu cresci a ouvir que só os preguiçosos procuravam atalhos. Mas eu não queria atalhos — queria tempo. Tempo para mim, para ler, para sonhar, para respirar.

Quando comecei a trabalhar como administrativa num escritório em Lisboa, percebi rapidamente que o salário mal dava para as contas. Mas fui poupando. Cada euro guardado era uma pequena vitória. Durante anos, resisti à tentação de comprar coisas supérfluas. Mas sempre sonhei com uma casa onde tudo funcionasse sem esforço: uma máquina de café automática, um aspirador robô, uma máquina de lavar loiça silenciosa.

O dia em que finalmente consegui comprar tudo foi uma mistura de orgulho e ansiedade. Orgulho por ter conseguido sozinha. Ansiedade pelo medo do julgamento — e não demorou muito até ele chegar.

— Isso é dinheiro deitado fora — disse o meu irmão Rui, quando viu o novo micro-ondas inteligente. — Antigamente fazíamos tudo à mão e ninguém morreu por isso.

— Pois, mas antigamente também não tínhamos tempo para nada — respondi, já com a voz trémula.

A discussão tornou-se rotina. Cada vez que alguém da família vinha cá a casa, havia comentários passivo-agressivos:

— Olha a menina moderna! Até o chão se limpa sozinho!
— Daqui a nada nem sabes cozinhar um arroz sem ajuda do telemóvel!

Por fora, ria-me. Por dentro, cada palavra era uma ferida aberta. Comecei a duvidar de mim mesma. Estaria mesmo a tornar-me preguiçosa? Estaria a perder as raízes?

No trabalho, as coisas não eram melhores. A minha colega Carla olhou para mim com sobranceria quando lhe contei das minhas novas aquisições.

— Isso é só para quem não sabe organizar o tempo — disse ela, ajeitando os óculos no nariz. — Eu cá faço tudo à mão e ainda tenho tempo para ir ao ginásio.

Senti-me pequena. Tentei justificar-me:

— Eu só quero ter mais tempo para mim…

— Pois, pois… — interrompeu ela, já a virar costas.

As semanas passaram e comecei a evitar falar sobre as minhas escolhas. Mas em casa, cada vez que ligava um dos meus aparelhos, sentia um misto de alívio e culpa. O silêncio da casa era interrompido apenas pelo zumbido do aspirador robô e pelo tilintar da máquina de café.

Uma noite, sentei-me à mesa com os meus pais e o Rui para jantar. O ambiente estava pesado desde o início.

— Sabes, Graça — começou o meu pai, com aquela voz grave que usava quando queria dar lições —, na nossa altura não havia nada disso. E olha que cresceste bem.

— Eu sei, pai… Mas agora é diferente. Trabalho todo o dia fora, chego cansada… Só quero facilitar um bocadinho — tentei argumentar.

A minha mãe suspirou alto:

— O problema é que hoje em dia ninguém quer fazer esforço. Tudo tem de ser fácil.

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as com um gole de água. Não queria mostrar fraqueza.

Depois do jantar, fechei-me no quarto e olhei para os meus aparelhos como se fossem culpados pela minha solidão. Senti-me dividida entre duas realidades: a tradição da minha família e o desejo de construir uma vida à minha maneira.

No fim de semana seguinte, convidei a minha amiga Mariana para lanchar. Ela sempre foi diferente dos outros: mente aberta, curiosa, sem medo do novo.

— Adoro isto tudo! — exclamou ela ao ver a casa arrumada sem esforço meu. — Finalmente alguém que percebe que o tempo é precioso!

Senti-me compreendida pela primeira vez em meses. Conversámos durante horas sobre sonhos adiados por falta de tempo, sobre como as mulheres ainda carregam o peso das tarefas domésticas mesmo trabalhando fora.

— Sabes que mais? — disse ela — O problema não és tu. O problema é essa mania portuguesa de glorificar o sofrimento.

As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias. Comecei a reparar em como todos à minha volta pareciam orgulhar-se do cansaço, como se fosse uma medalha de honra.

No domingo seguinte, durante o almoço de família, decidi enfrentar os meus medos.

— Sei que acham que sou preguiçosa por querer facilitar a vida — comecei, com a voz firme apesar do coração acelerado — mas trabalhei muito para isto. E se posso ter mais tempo para mim e para vocês, porque não?

O silêncio foi pesado. O meu pai olhou-me nos olhos e vi ali uma centelha de compreensão.

— Talvez tenhas razão… — murmurou ele, baixinho.

A minha mãe continuou calada, mas naquela noite trouxe-me um bolo feito por ela. Um gesto pequeno, mas cheio de significado.

Aos poucos, fui aprendendo a aceitar as minhas escolhas sem culpa. Percebi que não era menos portuguesa por querer conforto; era apenas alguém cansada de sacrificar tudo em nome do esforço cego.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos de viver por medo do julgamento dos outros? Será que algum dia vamos conseguir valorizar o nosso tempo sem sentir culpa? E vocês, também já sentiram este peso?