Mandei os meus filhos à mercearia, mas só um voltou: A história de uma mãe de Lisboa
— Tiago, Rui, tragam-me um litro de leite e pão, está bem? Não demorem, já está a escurecer! — gritei da cozinha, enquanto o cheiro do arroz de tomate se espalhava pela casa. O Tiago, sempre mais responsável, assentiu com a cabeça. O Rui, com os seus dez anos e aquele sorriso traquina, já estava a calçar as sapatilhas.
Fechei a porta atrás deles e fiquei a olhar pela janela. O bairro da Penha de França era seguro, diziam todos. Mas eu nunca consegui confiar totalmente. Talvez por ser mãe, talvez por ter crescido a ouvir histórias de desaparecimentos e tragédias que acontecem sempre aos outros.
Os minutos passaram devagar. O arroz fervia, o relógio batia cada segundo como se me quisesse avisar de algo. Quinze minutos. Vinte. Trinta. O meu coração começou a bater mais forte. Peguei no telemóvel e liguei ao Tiago. Chamava, chamava… Nada.
De repente, ouvi passos apressados na escada. Corri à porta. Era o Tiago, ofegante, com o saco das compras na mão e os olhos cheios de lágrimas.
— Mãe… o Rui… ele… ele ficou para trás! — soluçou, agarrando-se a mim como quando era pequeno.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me a sufocar. — Como assim ficou para trás? Onde é que ele está? — perguntei, tentando manter a calma.
— Ele quis ir ver os gatos ao beco da Dona Lurdes… Eu disse-lhe para não ir, mas ele não me ouviu! Quando voltei para trás, já não estava lá! Procurei-o, chamei-o…
A minha cabeça girava. Peguei nas chaves e saímos disparados escada abaixo. O Tiago tremia ao meu lado. No beco, só silêncio e o cheiro a lixo velho. Chamei pelo Rui até a voz me doer. Nada.
Corremos à mercearia, perguntámos aos vizinhos, à Dona Lurdes que estava à janela: — Não vi ninguém, Ana… — respondeu ela, com pena nos olhos.
O tempo deixou de existir. Só havia o medo e o vazio onde devia estar o meu filho.
A polícia chegou meia hora depois. Fizeram perguntas, anotaram tudo num bloco. — Deve ter ido brincar e já volta — disse um dos agentes, tentando acalmar-me. Mas eu sabia que algo estava errado.
As horas passaram lentas e cruéis. O Tiago não largava a minha mão. Eu sentia-me dividida entre o desespero e a culpa: fui eu que os mandei à rua. Fui eu que devia ter ido buscar o leite.
A noite caiu sobre Lisboa como um manto pesado. A casa encheu-se de familiares: a minha irmã Teresa chorava baixinho no sofá; o meu pai rezava no canto da sala; a minha mãe tentava consolar o Tiago.
Às três da manhã, bateram à porta. Era o agente Silva.
— Encontrámos uma mochila perto do rio — disse ele, com voz grave.
O meu coração parou. — Era do Rui? — perguntei, quase sem voz.
Ele assentiu devagar.
A partir desse momento, tudo se tornou num pesadelo confuso: buscas pela cidade, cartazes com a cara do Rui colados em cada esquina, entrevistas na televisão local. O Tiago fechou-se em silêncio; eu alternava entre gritar com todos e chorar sozinha na casa de banho.
Os dias passaram sem notícias. As pessoas começaram a evitar-me na rua; alguns olhavam com pena, outros com desconfiança. Ouvi sussurros: “Se calhar ela não devia ter deixado os miúdos irem sozinhos…” “Hoje em dia não se pode confiar em ninguém…”
O meu marido, o João, chegou de França três dias depois. Tínhamos discutido antes dele partir para trabalhar lá fora; agora só havia espaço para o desespero partilhado.
— Isto é culpa minha — disse ele numa noite, enquanto olhava para o teto do nosso quarto vazio.
— Não digas isso… — respondi, mas no fundo sentia o mesmo.
A polícia continuava as buscas, mas as esperanças iam-se esvaindo. O Tiago começou a ter pesadelos; acordava a gritar pelo irmão. Eu já não sabia como ser mãe dele sem sentir que estava a falhar outra vez.
Uma semana depois, recebi uma chamada anónima:
— Se quiseres ver o teu filho outra vez, prepara dez mil euros — disse uma voz rouca do outro lado.
O mundo parou outra vez. Liguei à polícia; disseram para manter a calma e seguir as instruções.
Durante dois dias vivi entre a esperança e o terror absoluto. O João tentou arranjar dinheiro emprestado; eu mal conseguia comer ou dormir.
No terceiro dia, outra chamada:
— Deixa o dinheiro no jardim da igreja às dez da noite. Sozinha.
Fiz tudo como mandaram. Esperei na escuridão gelada do jardim até sentir uma mão no meu ombro.
Era um polícia à paisana; tinham montado uma operação para apanhar os raptores. Mas ninguém apareceu para recolher o dinheiro.
No dia seguinte, encontraram o Rui num bairro afastado da cidade: sujo, assustado, mas vivo.
Corri para ele no hospital; abracei-o como se nunca mais fosse largar.
— Mãe… tive medo… — murmurou ele no meu colo.
Chorei como nunca chorei antes.
A vida nunca voltou ao normal. O Rui ficou mais calado; o Tiago tornou-se protetor demais; eu nunca mais consegui dormir descansada.
As pessoas continuaram a falar: “Foi sorte terem-no encontrado…” “Hoje em dia é preciso ter cuidado…”
Mas ninguém sabe o peso que carrego todos os dias: aquele momento em que decidi mandar os meus filhos à rua sozinhos.
Será que alguma vez vou perdoar-me? Quantas mães vivem com este medo todos os dias? E vocês — alguma vez sentiram esta culpa silenciosa?