Mãe, Preciso de Ti Agora: Quando o Amor se Torna Peso
— Inês, preciso de ti agora! — A voz da minha mãe ecoou pelo telefone, trémula mas firme, como tantas outras vezes. Eram três da manhã. O meu coração disparou, entre o medo e a irritação. Saltei da cama, tropeçando nos lençóis, enquanto o meu marido, Rui, murmurava: — Outra vez? Não podes simplesmente desligar?
Mas desligar não era opção. Desde que o meu pai morreu, há cinco anos, a minha mãe tornou-se o epicentro do meu mundo — ou melhor, do meu caos. Tinha 67 anos, saudável, lúcida, mas parecia incapaz de estar sozinha. Os pedidos eram sempre urgentes: “Inês, não consigo dormir, ouves este barulho?”, “Inês, preciso que venhas ver se fechei o gás”, “Inês, dói-me o peito, mas acho que é só ansiedade”. E eu ia. Sempre ia.
Naquela noite, cheguei ao apartamento dela em Benfica com os olhos semicerrados e o coração apertado. Ela estava sentada no sofá, impecavelmente vestida para dormir, mas com o rosto pálido de ansiedade.
— O que foi desta vez, mãe?
— Ouvi passos no corredor. Tenho medo que seja alguém a tentar entrar.
Suspirei. Verifiquei portas e janelas. Tudo trancado. Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão.
— Mãe, tens de confiar em ti. Não podes chamar-me sempre que ouves um barulho.
Ela olhou-me com aqueles olhos castanhos enormes, cheios de lágrimas.
— Eu sei, filha… Mas sinto-me tão sozinha.
E ali estava o dilema: como dizer não à solidão da minha mãe sem me sentir a pior filha do mundo?
No dia seguinte, cheguei atrasada ao trabalho outra vez. A minha chefe, Dona Teresa, olhou para mim com aquele ar de quem já perdeu a paciência.
— Inês, precisamos de falar sobre a tua pontualidade.
Expliquei-lhe a situação. Ela suspirou.
— Todos temos problemas em casa. Mas tens de separar as coisas. O teu lugar é aqui durante o horário de trabalho.
Saí do gabinete dela com um nó na garganta. O Rui ligou-me à hora de almoço.
— Inês, isto não pode continuar assim. A tua mãe está a controlar a nossa vida toda.
— Não digas isso! Ela precisa de mim!
— E eu? E tu? Quando é que vais precisar de ti?
Desliguei sem responder. Senti-me esmagada entre dois mundos: o da filha perfeita e o da mulher que queria respirar.
As semanas passaram e os telefonemas continuaram. Comecei a evitar sair com amigas ou fazer planos para mim. A minha mãe ligava-me se eu demorasse mais do que dez minutos a responder às mensagens.
Uma noite, durante um jantar em casa dos meus sogros em Cascais, o telemóvel vibrou incessantemente. Era ela outra vez.
— Inês, preciso que venhas já cá! O vizinho do lado está a fazer barulho estranho!
O Rui tirou-me o telefone das mãos.
— Chega! Vais ligar-lhe e dizer que hoje não podes ir. Que ela tem de aprender a lidar com estas coisas sozinha.
Olhei para ele como se me tivesse pedido para saltar de uma ponte.
— Não percebes… Ela só tem a mim!
— E tu só tens a ti? — respondeu ele, magoado.
A discussão continuou no carro até Lisboa. Acusei-o de insensibilidade; ele acusou-me de ser mártir. Cheguei a casa exausta e chorei até adormecer.
No dia seguinte, decidi falar com a minha mãe com mais firmeza.
— Mãe, precisamos de conversar. Eu amo-te muito, mas não posso continuar assim. Estou a perder o emprego, o Rui está farto… Eu própria estou exausta.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos.
— Então vais abandonar-me como toda a gente? — sussurrou ela.
Senti uma facada no peito.
— Não é isso! Mas tens de tentar ser mais independente. Porque não vais ao centro de dia? Ou fazes voluntariado? Conhecias pessoas novas…
Ela abanou a cabeça.
— Não quero saber dessas coisas. Só preciso de ti.
Saí dali com as mãos a tremer. Senti-me egoísta por desejar liberdade. Senti raiva por ela não tentar mudar. Senti culpa por tudo.
As semanas seguintes foram um ciclo vicioso: tentava impor limites e acabava por ceder ao primeiro sinal de angústia dela. O Rui afastava-se cada vez mais; as nossas conversas eram monossilábicas. No trabalho, fui chamada novamente à atenção — desta vez com ameaça de despedimento.
Uma noite, depois de mais um telefonema urgente da minha mãe (desta vez porque achava que tinha febre), sentei-me no chão da cozinha e chorei como uma criança perdida. O Rui aproximou-se e sentou-se ao meu lado.
— Inês… Não podes salvar toda a gente. Nem sempre é tua responsabilidade.
Olhei para ele com os olhos inchados.
— Mas se não for eu… quem será?
Ele abraçou-me em silêncio. Pela primeira vez em meses senti algum conforto naquele abraço — mas também um vazio enorme dentro de mim.
No dia seguinte marquei consulta com uma psicóloga. Contei-lhe tudo: o medo da solidão da minha mãe, a culpa constante, o desgaste no casamento e no trabalho.
— Inês — disse ela — amar alguém não significa sacrificar-se até à exaustão. A tua mãe precisa de aprender a viver sem depender tanto de ti. E tu precisas de aprender a viver sem carregar o mundo às costas.
Comecei a ir à terapia todas as semanas. Aos poucos fui aprendendo a dizer “não” sem sentir que estava a cometer um crime. Combinei horários fixos para visitar a minha mãe e incentivei-a (com muita resistência) a participar em atividades no bairro.
O caminho foi longo e cheio de recaídas. Houve dias em que voltei atrás e corri para ela ao primeiro pedido aflito. Houve outros em que consegui manter-me firme e cuidar também de mim própria.
O Rui foi recuperando alguma esperança em nós; começámos a sair mais juntos, a rir outra vez. No trabalho fui ganhando confiança e até fui promovida meses depois.
A minha mãe nunca deixou completamente os telefonemas noturnos ou os pedidos urgentes — mas aprendeu a esperar pelo dia seguinte na maioria das vezes. E eu aprendi que amar alguém também é ensinar-lhe autonomia.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres como eu vivem presas entre o amor e a culpa? Quantos filhos sacrificam tudo pelos pais sem perceberem que também têm direito à sua própria vida? Será possível cuidar sem nos perdermos pelo caminho?