Mãe, Porque Não Deste de Comer às Crianças?
— Mãe, porque é que o Tiago me disse que não jantou ontem? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto olhava para o telefone na mão, sentindo o suor escorrer-me pela palma. Do outro lado, o silêncio era tão pesado que quase podia ouvi-lo a cair no chão da cozinha.
— Oh filha… — começou ela, hesitante. — Não sei do que estás a falar. Eles comeram sim…
Mas eu sabia que não era verdade. O Tiago tinha-me contado, com aquela sinceridade crua das crianças, que ele e a irmã tinham ido para a cama com fome. E eu, que todos os meses fazia contas à vida para conseguir enviar dinheiro à minha mãe, sentia agora uma raiva surda a crescer-me no peito. Como é que era possível? Como é que ela podia deixar os meus filhos passar fome?
A minha mãe ficou viúva há três anos. O meu pai morreu de repente, um ataque ao coração numa manhã fria de janeiro. Desde então, tudo mudou. Eu e o meu marido tivemos de emigrar para França para conseguir trabalho. Deixámos os miúdos com ela em Vila Nova de Gaia, porque acreditávamos que ali teriam uma infância melhor do que num quarto apertado nos arredores de Paris. Todos os meses enviava-lhe dinheiro — às vezes mais do que podia — para garantir que nada lhes faltava.
Mas agora, de repente, tudo parecia uma mentira.
— Mãe, por favor… — insisti, tentando controlar as lágrimas. — Diz-me a verdade. O que se está a passar aí?
Do outro lado, ouvi-a fungar. — Eu… às vezes não tenho forças, filha. Às vezes não consigo sair da cama. O dinheiro chega, mas eu… — A voz dela falhou.
Senti-me dividida entre a compaixão e a fúria. Lembrei-me das vezes em que ela me ralhava por não comer tudo do prato, das sopas feitas à pressa depois de um turno duplo no hospital, dos abraços apertados quando eu chorava por causa dos miúdos na escola. E agora era ela quem precisava de mim — mas eu estava longe demais.
O meu marido entrou na sala nesse momento, viu-me com o telefone na mão e percebeu logo que algo estava errado.
— O que foi? — perguntou ele, baixinho.
Tapei o microfone do telemóvel e sussurrei:
— A mãe não está a dar de comer aos miúdos como deve ser…
Ele suspirou, passou as mãos pelo cabelo e sentou-se ao meu lado. — Temos de ir lá. Não podemos deixar isto assim.
Mas como? Os bilhetes de avião eram caros, os patrões não davam folgas facilmente e tínhamos contas para pagar. Senti-me presa numa armadilha sem saída.
Voltei ao telefone. — Mãe, eu vou aí este fim de semana. Vamos falar cara a cara.
Ela não respondeu logo. Depois disse apenas: — Está bem, filha.
Desliguei e fiquei ali sentada, a olhar para o vazio. O meu marido abraçou-me e eu desatei a chorar.
Naquela noite não dormi. A cabeça rodava com perguntas: Será que fui egoísta por ter deixado os miúdos com ela? Será que devia ter percebido antes? E se alguma coisa lhes acontecesse?
No sábado seguinte, apanhámos o primeiro voo para o Porto. O coração batia-me tão depressa que quase me doía no peito. Quando chegámos à casa da minha mãe, os miúdos correram para mim com um sorriso triste nos lábios.
— Mãe! — gritaram em uníssono.
Abracei-os com força, tentando esconder as lágrimas. Olhei para eles: estavam mais magros do que me lembrava, com olheiras fundas e roupas demasiado largas.
A minha mãe apareceu à porta da cozinha, encolhida dentro do seu robe velho. Os olhos estavam vermelhos e inchados.
— Olá filha…
O meu marido foi direto ao assunto:
— Dona Rosa, precisamos de falar consigo.
Sentámo-nos todos à mesa da cozinha. O silêncio era tão denso que quase sufocava.
— Mãe — comecei eu —, porque é que isto está a acontecer? Porque é que os miúdos não têm comida suficiente?
Ela baixou os olhos para as mãos trémulas.
— Eu tentei… juro que tentei… Mas desde que o teu pai morreu… Eu não consigo fazer nada direito. Às vezes esqueço-me das horas… fico ali sentada a olhar para o nada…
O meu marido interrompeu:
— Mas o dinheiro chega sempre! O que faz com ele?
A minha mãe começou a chorar baixinho.
— Pago as contas… compro remédios… às vezes esqueço-me de ir ao supermercado… outras vezes fico sem forças para sair de casa…
Senti uma mistura de raiva e pena. Queria gritar-lhe, abaná-la até ela acordar daquela apatia. Mas ao mesmo tempo via ali uma mulher partida pela vida, consumida pela solidão e pela dor.
Os miúdos olhavam para nós em silêncio, assustados.
— Mãe — disse eu suavemente —, tu precisas de ajuda. Não podes continuar assim.
Ela abanou a cabeça.
— Eu sei… mas tenho vergonha… Não quero ser um peso para ti.
O meu marido levantou-se e foi buscar um copo de água para ela.
— Dona Rosa, ninguém aqui é um peso para ninguém. Somos família. Temos de cuidar uns dos outros.
Nesse momento percebi como tudo era frágil: as relações familiares, as certezas do dia-a-dia, a confiança entre mãe e filha. Senti uma culpa profunda por ter estado longe demais para ver o sofrimento dela — e dos meus filhos.
Passámos o resto do fim-de-semana juntos. Fui ao supermercado com os miúdos, enchi o frigorífico e cozinhei as comidas preferidas deles: arroz de pato para o Tiago, bacalhau à Brás para a Leonor. Vi-os sorrir outra vez e prometi-lhes que nunca mais iriam passar fome.
Falei com uma assistente social da junta de freguesia e marquei uma consulta no centro de saúde para a minha mãe. Ela resistiu ao início, mas depois aceitou ir — talvez por ver nos meus olhos o desespero e o amor misturados.
Na última noite antes de regressar a França, sentei-me ao lado dela na varanda. O ar estava fresco e cheirava a terra molhada depois da chuva.
— Desculpa filha… — murmurou ela. — Eu devia ter pedido ajuda.
Agarrei-lhe na mão enrugada e beijei-a.
— Eu também devia ter percebido antes…
Ficámos ali em silêncio durante muito tempo, apenas a ouvir o som distante dos carros na rua e os grilos no jardim.
Quando voltei para França, deixei uma parte do meu coração naquela casa antiga em Gaia. Prometi telefonar todos os dias e visitar mais vezes. Mas sabia que nada voltaria a ser igual: aquela ferida ficaria sempre ali, entre nós.
Agora pergunto-me muitas vezes: quantas famílias vivem assim? Quantos filhos acham que estão a proteger os pais ou os filhos à distância — sem perceberem o sofrimento escondido atrás das portas fechadas? Será possível reconstruir a confiança depois de tanta dor?