“Mãe, não pode ficar aqui para sempre”: A história de uma vida entre paredes que não são minhas

— Mãe, podes não deixar as tuas coisas espalhadas na sala? — A voz da Vera cortou o ar como uma faca afiada. Eu estava sentada no sofá, com o meu tricô e a manta azul que me acompanhava desde os tempos do apartamento em Benfica. O Tomás, meu filho, olhou de relance por cima do portátil, mas não disse nada. Fingi não ouvir, mas o nó na garganta apertou-se.

Nunca pensei que a minha vida fosse resumir-se a isto: medir cada passo, cada suspiro, dentro de uma casa que não é minha. Quando vendi o meu T2, há dois anos, achei que estava a fazer o melhor. O prédio antigo já não tinha elevador e as escadas pareciam crescer todos os dias. Os vizinhos iam partindo, um a um. O silêncio dos serões era ensurdecedor. O Tomás e a Vera vieram com a proposta: “Vem viver connosco, mãe. Vais ter companhia, não precisas de te preocupar com nada.”

Na altura, senti-me aliviada. Eles tinham acabado de comprar este apartamento em Odivelas — moderno, espaçoso, com varanda e vista para o jardim. “O teu quarto é só teu”, disseram. E era verdade: pintaram-no de amarelo claro, puseram cortinas novas e até uma cómoda para as minhas roupas. Mas ninguém me avisou que, ao entrar nesta casa, teria de deixar para trás mais do que móveis.

No início, tudo parecia correr bem. Acordava cedo, fazia café para todos, punha a mesa para o pequeno-almoço. A Vera agradecia com um sorriso apressado antes de sair para o trabalho. O Tomás ficava em teletrabalho no escritório improvisado na sala. Eu tentava ser útil: limpava, cozinhava, tratava da roupa. Mas aos poucos fui percebendo que a minha presença era mais tolerada do que desejada.

— Mãe, não precisas de lavar a loiça agora. Faz barulho e eu estou em reunião — disse o Tomás um dia, sem levantar os olhos do ecrã.

— Desculpa, filho. Não reparei…

— Não faz mal — respondeu ele, mas já com aquele tom impaciente que me fazia sentir invisível.

Comecei a passar mais tempo no quarto. Lia os mesmos livros vezes sem conta, olhava pela janela para as crianças no parque lá em baixo. Às vezes ouvia-os rir na sala enquanto viam séries ou recebiam amigos. Nessas noites, nem me convidavam para jantar com eles. “Hoje vamos pedir comida de fora”, diziam-me à porta do quarto. “Já jantaste?”

Uma noite ouvi-os discutir baixinho na cozinha:

— Ela está sempre aqui… Não temos privacidade nenhuma.

— É só por uns tempos, Vera. Ela não tem para onde ir.

— Pois… mas isto não é vida.

Fiquei ali parada atrás da porta, com as mãos a tremer e o coração aos saltos. Não queria ser um peso. Sempre fui independente — trabalhei quarenta anos como professora primária em Lisboa, criei o Tomás sozinha depois do pai dele nos ter deixado. Nunca pedi nada a ninguém.

No Natal passado tentei animar a casa: fiz rabanadas, comprei presentes para todos, decorei o corredor com luzes coloridas. Mas a Vera suspirou quando viu as decorações:

— Mãe, isto é um bocadinho demais…

O Tomás limitou-se a sorrir sem entusiasmo. No jantar, falaram sobre viagens e projetos de trabalho como se eu não estivesse ali.

Comecei a sentir-me uma intrusa na vida deles. Até as pequenas rotinas se tornaram motivo de tensão:

— Mãe, podes não usar tanto perfume? Fica o cheiro todo na casa.

— Mãe, não abras as janelas de manhã… entra frio.

— Mãe…

A palavra “mãe” começou a soar como um aviso.

Um dia tentei conversar com o Tomás:

— Sentes-te incomodado por eu estar aqui?

Ele hesitou:

— Não é isso… Só que… mudaste tudo ao vires para cá. A nossa rotina…

— Eu só queria estar perto de vocês — respondi baixinho.

Ele suspirou:

— Eu sei… mas talvez fosse melhor pensares em ir para um lar ou assim…

As palavras caíram como pedras. Um lar? Sempre temi esse destino — vi colegas minhas acabarem os dias em lares frios, rodeadas de estranhos e memórias desbotadas.

Nessa noite chorei baixinho na almofada. Senti saudades do meu apartamento: das paredes cheias de fotografias antigas, dos vizinhos que me conheciam pelo nome, do cheiro do pão quente da padaria ao lado. Aqui sou apenas uma sombra que atravessa corredores alheios.

Os dias foram-se arrastando. A Vera começou a chegar mais tarde do trabalho; o Tomás fechava-se cada vez mais no escritório. Eu tentava ocupar-me: fazia croché para as netas da vizinha do lado, escrevia cartas que nunca enviava.

Um sábado à tarde ouvi vozes na sala:

— Achas mesmo justo ela ficar aqui? — perguntou a Vera.

— Não sei… Mas não posso deixá-la na rua.

— E se ela vendesse o apartamento para nada? Agora estamos presos.

Senti-me traída. Dei-lhes tudo o que tinha — até as poupanças entreguei ao Tomás quando compraram este apartamento maior “para todos cabermos”. Agora percebia: nunca foi para mim. Era para eles.

No domingo seguinte tentei sair para dar um passeio ao jardim. Quando voltei, encontrei as minhas coisas arrumadas numa caixa no corredor:

— Mãe… achámos melhor guardar algumas coisas tuas para não ocupar tanto espaço — disse a Vera sem me olhar nos olhos.

Sentei-me no banco da varanda e chorei como uma criança perdida.

Hoje passo os dias no quarto pequeno — já nem me atrevo a sentar na sala. O sofá onde costumava tricotar agora está sempre ocupado pela Vera ou pelos amigos dela. O Tomás quase não fala comigo; quando fala é só sobre contas ou recados.

Às vezes pergunto-me se fiz bem em vender tudo por esta promessa de companhia e amor familiar. Será este o destino de quem envelhece em Portugal? Seremos todos condenados à solidão entre paredes que não são nossas?

Se pudesse voltar atrás… teria feito diferente? Ou será que este é apenas o preço de amar demais e esperar reciprocidade?

E vocês? Já sentiram que perderam o vosso lugar no mundo por confiar demais na família?