Mãe, estás mesmo feliz? – O regresso à casa da ex-sogra
— Então, Mariana, diz-me lá: és mesmo feliz agora? — A voz da Dona Amélia ecoou na sala, cortando o silêncio pesado como uma faca. O relógio de parede marcava as seis e meia, mas o tempo parecia suspenso desde que entrei naquele apartamento em Benfica, onde tantas vezes fui nora e filha de coração.
Não respondi logo. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o perfume antigo das cortinas, e por um instante voltei atrás no tempo: aos jantares de domingo, às discussões acesas entre mim e o Ricardo, ao riso do nosso filho Tomás a correr pelo corredor. Agora, tudo parecia distante, como se pertencesse a outra vida.
— Não sei, Dona Amélia. — A minha voz saiu mais baixa do que queria. — Acho que ninguém é feliz todos os dias.
Ela pousou a chávena com um gesto lento, estudando-me com aqueles olhos claros que sempre me intimidaram. — Sabes, Mariana, quando o Ricardo me disse que vocês se iam separar… pensei que era só mais uma birra. Vocês sempre foram tão teimosos os dois.
Sorri sem vontade. — Desta vez foi diferente.
O silêncio voltou a instalar-se. Do outro lado da porta fechada, ouvia-se o som abafado da televisão do vizinho. Lembrei-me de quando eu e o Ricardo discutíamos baixinho para não incomodar ninguém, mas acabávamos sempre por magoar-nos mais do que devíamos.
— O Tomás sente muito a tua falta — disse ela de repente. — Ele não diz, mas eu vejo nos olhos dele. E tu? Sentes falta desta casa?
Engoli em seco. Senti um nó na garganta ao olhar para a fotografia do nosso casamento ainda pousada na estante. — Sinto falta de muita coisa. Mas não sei se sinto falta do que éramos… ou do que eu queria que fôssemos.
Ela suspirou fundo. — Sabes, Mariana… Eu também não fui uma boa sogra. Muitas vezes achei que devia meter-me menos na vossa vida. Mas tinha medo de perder o meu filho. E agora perdi-vos aos dois.
As palavras dela bateram fundo. Lembrei-me das vezes em que me senti sozinha naquela família, das indirectas sobre como eu devia educar o Tomás ou arrumar a casa. Mas também me lembrei dos abraços apertados quando perdi o meu pai, dos bolos de laranja ao domingo e das conversas longas na varanda.
— Não foi só culpa tua — disse-lhe, finalmente. — Eu também errei muito. Quis mudar o Ricardo à força e acabei por perder-me a mim própria.
Ela sorriu tristemente. — O amor é tramado, Mariana. Às vezes achamos que basta querer muito para dar certo… mas não chega.
Ficámos assim, cada uma perdida nos seus pensamentos. O telefone tocou ao longe e ela foi atender. Aproveitei para olhar em volta: as mesmas almofadas floridas, o tapete gasto pelo tempo, a jarra com flores artificiais na mesa de centro. Tudo igual, mas tudo diferente.
Quando voltou, trazia um envelope na mão. — Isto é para ti. Encontrei-o quando arrumava as coisas do Ricardo. — Estendeu-mo com hesitação.
Abri o envelope devagar. Lá dentro estava uma carta escrita pelo Ricardo, datada de há quase dois anos:
“Mariana,
Se algum dia leres isto é porque já não estamos juntos. Queria pedir-te desculpa por tudo o que não consegui ser para ti. Sei que te magoei mais vezes do que devia e que me fechei no meu mundo quando tu só querias ajudar-me. Espero que encontres a felicidade que eu nunca soube dar-te.
Cuida bem do Tomás.
Ricardo”
As lágrimas caíram-me sem aviso. A Dona Amélia aproximou-se e pousou a mão no meu ombro.
— Ele nunca teve coragem de te dar isto — murmurou ela. — Mas acho que precisavas de ler.
Fiquei ali sentada, com a carta nas mãos e o coração apertado por tudo o que ficou por dizer entre mim e o Ricardo. Por tudo o que nunca soubemos perdoar um ao outro.
— Sabe… às vezes penso se fizemos mesmo tudo o que podíamos — confessei-lhe. — Ou se simplesmente desistimos cedo demais.
Ela apertou-me a mão com força inesperada para alguém tão frágil. — O importante é não desistires de ti própria agora, Mariana. O Tomás precisa de ti inteira.
Sorri-lhe entre lágrimas. — Obrigada por ainda me receber nesta casa… mesmo depois de tudo.
Ela encolheu os ombros, emocionada. — Uma vez família… sempre família.
Quando saí daquela casa naquela noite fria de Lisboa, senti-me mais leve e mais triste ao mesmo tempo. A carta do Ricardo queimava-me no bolso do casaco como um segredo antigo finalmente revelado.
Agora pergunto-me: quantas famílias vivem presas ao passado sem coragem para conversar? Quantas vezes deixamos de perdoar porque achamos que já é tarde demais? Talvez nunca seja tarde para tentar outra vez…