Maçãs na Mesa: O Dia em que a Porta se Fechou para Mim

— Só trouxeste isto? — A voz da Leonor cortou o silêncio da sala como uma faca afiada. O saco de maçãs que eu segurava parecia pesar toneladas nas minhas mãos. Olhei para ela, para o sorriso forçado e os olhos semicerrados, e percebi que aquele domingo não seria apenas mais um chá de família.

— Trouxe maçãs, sim. São das árvores do quintal da mãe. Achei que ias gostar — tentei sorrir, mas a minha voz saiu trémula. O cheiro a bolo acabado de fazer misturava-se com o perfume caro da Leonor e o barulho das crianças a correr pela casa.

Ela pegou no saco com dois dedos, como se fosse algo sujo. — A sério, Mariana? Depois do que fiz por ti no teu aniversário? — O tom dela era baixo, mas carregado de veneno. Senti o rosto a arder.

O meu cunhado, Rui, apareceu à porta da cozinha, limpando as mãos ao avental. — Está tudo bem aqui? — perguntou, olhando de mim para Leonor.

— Está tudo ótimo — respondeu ela, sem tirar os olhos de mim. — A Mariana trouxe… maçãs.

As crianças entraram aos gritos: — Tia Mariana! Tia Mariana! — Corriam para mim, abraçando-me pelas pernas. Sorri-lhes, tentando ignorar o olhar gélido da minha irmã.

Sentei-me à mesa, mas o ambiente estava pesado. O bolo de aniversário ainda estava ali, com as velas já gastas e metade comido. Lembrei-me do presente caro que Leonor me dera no meu aniversário: uma mala de marca, embrulhada com laço dourado. Senti-me pequena.

— Não tinhas nada melhor para trazer? — murmurou ela, baixinho, enquanto me servia chá.

— Não sabia que era preciso trazer presentes caros para tomar chá contigo — respondi, tentando manter a calma.

Ela bufou. — Não é questão de ser caro. É questão de consideração. Sabes bem disso.

O Rui tentou intervir: — Leonor, deixa lá isso. A Mariana veio cá para estar connosco.

Mas ela não largava o osso. — Claro, Rui. Para estar connosco… com um saco de maçãs.

O silêncio caiu pesado sobre nós. As crianças continuavam a brincar, alheias à tensão dos adultos. Olhei para a janela, para o jardim onde brincávamos quando éramos pequenas. Lembrei-me das tardes em que partilhávamos maçãs roubadas do quintal dos vizinhos e ríamos até nos doer a barriga.

— Sabes, Leonor — disse eu, baixinho — às vezes penso que crescemos e esquecemos o que importa. Não são as malas caras nem os presentes embrulhados em laços. São as pequenas coisas. Como estas maçãs.

Ela riu-se, amarga. — Isso é conversa de quem não tem nada para dar.

Senti uma lágrima ameaçar cair. Engoli em seco. — Talvez seja mesmo isso. Talvez eu não tenha nada para dar além do que sou.

O Rui pousou a mão no meu ombro. — Mariana, não ligues…

Mas Leonor já estava de pé, tirando o saco de maçãs da mesa e atirando-o para cima do balcão. — Se é só isto que tens para dar, então não vale a pena vires cá.

Levantei-me devagar. As crianças olharam para mim, confusas.

— Tia Mariana vai embora? — perguntou a mais nova, a Matilde.

Ajoelhei-me ao pé dela e abracei-a com força. — A tia volta outro dia, querida.

Quando me levantei, Leonor já estava à porta da entrada, segurando-a aberta com uma mão firme.

— Adeus, Mariana.

Saí sem olhar para trás. O vento frio da tarde bateu-me na cara enquanto descia as escadas do prédio. O saco de maçãs ficou lá dentro, esquecido no balcão como um símbolo de tudo o que nos separava.

Caminhei pelas ruas do bairro onde crescemos, sentindo o peso da rejeição nos ombros. Lembrei-me dos meus outros irmãos: o Miguel, sempre tão diplomático; o Diogo e a Inês ainda na universidade, cheios de sonhos e esperança; e eu ali, a mais nova, sempre a tentar agradar a todos e a falhar redondamente.

O telefone vibrou no bolso. Era uma mensagem do Miguel: “A Leonor ligou-me. O que se passou?”

Respondi apenas: “Nada importante. Só umas maçãs mal entregues.”

Sentei-me num banco do jardim onde costumávamos brincar em miúdos e deixei finalmente as lágrimas caírem. Senti raiva por ter sido posta fora por algo tão pequeno e tristeza por perceber que talvez nunca fosse suficiente para a Leonor.

No dia seguinte, acordei com uma sensação de vazio no peito. A mãe ligou-me logo cedo:

— Mariana, está tudo bem? A Leonor disse que saíste chateada ontem…

— Está tudo bem, mãe. Só… diferenças de opinião.

Ela suspirou do outro lado da linha. — Vocês sempre foram tão próximas… Não deixes que isto vos afaste.

Mas como não deixar? Como ignorar anos de pequenas mágoas acumuladas? Lembrei-me dos natais em que Leonor fazia questão de dar presentes caros e eu sentia sempre que ficava aquém; dos aniversários em que ela esperava ser surpreendida; das vezes em que me comparava aos outros irmãos.

À tarde recebi uma mensagem da Inês: “Ouvi dizer que houve drama ontem… Queres falar?”

Respondi: “Não vale a pena. Só queria ter sido aceite como sou.”

Durante dias evitei passar perto da casa da Leonor. O Miguel tentou juntar-nos num jantar de família mas inventei uma desculpa qualquer. Não queria enfrentar aquele olhar crítico outra vez.

Uma semana depois recebi um envelope pelo correio. Dentro vinha uma carta escrita à mão pela Matilde:

“Tia Mariana,
Gosto muito de ti e das tuas maçãs. A mãe ficou triste depois de saíres e chorou no quarto dela. Eu queria que viesses brincar comigo outra vez.
Beijinhos,
Matilde”

Chorei ao ler aquelas palavras simples e verdadeiras. Percebi então que talvez as crianças fossem as únicas capazes de ver o valor das pequenas coisas.

Peguei no telefone e liguei à Leonor. Ela atendeu ao fim de muitos toques:

— Olá…

— Olá… Recebi a carta da Matilde.

Silêncio do outro lado.

— Desculpa — disse ela finalmente, num sussurro quase imperceptível. — Fui injusta contigo.

Senti um nó na garganta mas forcei-me a falar:

— Eu só queria partilhar algo simples contigo… como fazíamos antes.

Ela chorou baixinho ao telefone e eu chorei também. Ficámos assim durante minutos intermináveis, cada uma a tentar encontrar palavras para remendar anos de mágoas mal resolvidas.

No fim combinámos um novo encontro: sem presentes caros nem expectativas impossíveis; só nós duas e as crianças… e talvez algumas maçãs.

Agora pergunto-me: quantas vezes deixamos que o orgulho fale mais alto do que o amor? Quantas portas fechamos por não sabermos aceitar gestos simples? E vocês… já sentiram o peso das vossas próprias maçãs?