Limites da Hospitalidade: O Meu Apartamento Não É Um Hotel – Como Aprendi a Dizer “Não”
— Mas, Mariana, é só por uns dias! — suplicou Teresa, com aquela voz doce que sempre usava quando queria alguma coisa. Eu olhei para ela, para o marido dela, Rui, e para os dois filhos pequenos que já corriam pela minha sala como se fosse deles. O cheiro do jantar que eu tinha acabado de preparar misturava-se com o perfume barato da Teresa e o suor das crianças. Senti um nó no estômago.
“Uns dias”, pensei. Em Portugal, toda a gente sabe que “uns dias” pode ser uma eternidade quando se trata de família. Mas como é que se diz não à prima que sempre foi como uma irmã? Como é que se fecha a porta a quem nos viu crescer?
— Claro, fiquem — ouvi-me dizer, enquanto o meu coração gritava o contrário.
Na primeira noite, tentei convencer-me de que estava a fazer a coisa certa. A Teresa tinha perdido o emprego em Setúbal, o Rui estava com problemas no trabalho e tinham sido despejados do apartamento. Eu era a única da família com um T3 em Lisboa — herança dos meus pais, que morreram cedo demais — e vivia sozinha desde que o Miguel me deixou. “É só por uns dias”, repeti para mim mesma enquanto ouvia os risos das crianças na sala e as vozes abafadas dos adultos no quarto de hóspedes.
Mas os dias passaram. E tornaram-se semanas.
A rotina mudou. O meu silêncio foi invadido pelo barulho constante: brinquedos espalhados, televisão alta, discussões entre Teresa e Rui sobre dinheiro. A minha cozinha tornou-se campo de batalha de tachos e panelas. O frigorífico esvaziava-se num instante. E eu? Eu desaparecia aos poucos.
Uma noite, cheguei tarde do trabalho. Tinha tido um dia horrível no escritório — o chefe implicou comigo por causa de um relatório mal feito, e a colega nova já me fazia sombra. Só queria tomar um banho quente e enfiar-me na cama. Mas assim que abri a porta, fui recebida pelo cheiro intenso de peixe frito e pela voz do Rui:
— Mariana, não tens mais arroz? — perguntou, sem sequer um “boa noite”.
Fui à despensa buscar arroz, engolindo a irritação. Teresa apareceu atrás de mim.
— Olha, amanhã podes ficar com as crianças? Tenho uma entrevista e o Rui vai sair cedo.
— Teresa… eu trabalho amanhã — tentei explicar.
Ela suspirou alto.
— Mas és sempre tão ocupada… Não podes ajudar nem um bocadinho?
Senti-me egoísta. Senti-me má pessoa. Mas também senti raiva. Raiva de mim mesma por não conseguir dizer não.
As semanas tornaram-se meses. Comecei a evitar ir para casa. Ficava horas no café da esquina, só para adiar o regresso ao caos. Os meus amigos deixaram de me convidar para sair — “Estás sempre cansada”, diziam. E eu estava mesmo: cansada física e emocionalmente.
Uma noite, depois de mais uma discussão entre Teresa e Rui — desta vez sobre as contas da luz — fechei-me na casa de banho e chorei em silêncio. Olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo desgrenhado, olhos sem brilho. Quem era aquela mulher? Onde estava a Mariana independente, que adorava ler até tarde e ouvir música clássica ao pequeno-almoço?
No dia seguinte, acordei com gritos na sala. As crianças tinham partido um vaso antigo da minha mãe. Teresa gritava com elas; Rui gritava com Teresa; eu só queria desaparecer.
— Mariana! — chamou Teresa — Podes ajudar aqui?
Fui até à sala, vi os cacos espalhados no chão e senti uma dor aguda no peito.
— Era da minha mãe… — murmurei.
Teresa encolheu os ombros.
— São crianças, Mariana! Não faças um drama.
Nesse momento, algo dentro de mim partiu-se também.
No trabalho, comecei a falhar prazos. O chefe chamou-me ao gabinete.
— Mariana, está tudo bem em casa?
Quase chorei ali mesmo. Mas limitei-me a sorrir e dizer que sim.
Nessa noite, sentei-me à mesa da cozinha com Teresa e Rui.
— Precisamos de conversar — disse eu, com a voz a tremer.
Eles olharam para mim como se eu fosse uma estranha.
— Eu gosto muito de vocês… mas isto não está a funcionar para mim. Preciso do meu espaço. Preciso da minha vida de volta.
Teresa ficou em silêncio durante uns segundos eternos. Depois levantou-se bruscamente.
— Sabia! Sabia que mais cedo ou mais tarde ias atirar-nos à cara! Família só serve enquanto dá jeito!
Rui cruzou os braços.
— Achas que é fácil para nós? Achas que gostamos de estar aqui?
As crianças começaram a chorar na sala ao ouvir os gritos dos pais.
Eu tremia dos pés à cabeça.
— Não é isso… Só preciso de paz — tentei explicar.
Teresa saiu da cozinha batendo com a porta. Rui ficou ali sentado, calado, olhando para as mãos.
Naquela noite não dormi. Senti culpa, vergonha e alívio ao mesmo tempo. No dia seguinte fui trabalhar como um fantasma.
Durante uma semana quase não nos falámos em casa. O ambiente era insuportável. Finalmente, Teresa anunciou:
— Vamos sair no fim do mês. Não te preocupes mais connosco.
O tom era frio como gelo.
Quando finalmente saíram — com malas, brinquedos e mágoas — sentei-me no chão da sala vazia e chorei como há muito não chorava. Chorei pela solidão que voltava, pelo vaso partido da minha mãe, pela família desfeita e por mim mesma.
Os dias seguintes foram estranhos: silêncio absoluto, casa arrumada mas vazia demais. Senti falta das vozes das crianças — mas também senti alívio por poder ouvir os meus próprios pensamentos outra vez.
A família ficou dividida: alguns disseram que fiz bem em impor limites; outros acusaram-me de egoísmo. A Teresa deixou de me falar durante meses. No Natal desse ano sentei-me sozinha à mesa pela primeira vez na vida.
Mas aos poucos fui recuperando quem era: voltei a ler antes de dormir; comprei flores novas para substituir o vaso partido; telefonei aos amigos antigos e aceitei convites para sair. Aprendi a gostar do meu silêncio outra vez.
Hoje olho para trás e pergunto-me: porque é tão difícil dizer “não” à família? Porque é que nos sentimos obrigados a sacrificar tudo pelos outros? Será egoísmo querer paz? Ou será coragem?
E vocês? Já passaram por algo assim? Até onde vai o vosso limite?