Libertar-me da Sombra: A Mãe que Ousou Tudo
— Mãe, não podes fazer isto! — gritou o Rui, a voz embargada entre a raiva e a incredulidade, enquanto eu, com as mãos trémulas, empurrava o último saco de roupa para o corredor. O cheiro a detergente misturava-se com o suor frio que me escorria pelas costas. O silêncio da casa, outrora tão cheia de risos e discussões, agora era cortado apenas pelos soluços da Ana, a minha nora, sentada no sofá, os olhos vermelhos de tanto chorar.
Nunca pensei chegar a este ponto. Sempre fui aquela mulher que se anulava, que dizia sim a tudo, que vivia para os outros. Quando o António morreu, há seis anos, achei que o mundo tinha acabado. O Rui, o meu único filho, tornou-se o centro do meu universo. E eu, sem perceber, tornei-me sombra de mim mesma, vivendo apenas para garantir que ele não sentia a falta do pai. Mas, ao fazê-lo, esqueci-me de mim.
A Ana entrou na nossa vida pouco depois. Uma rapariga doce, de olhos castanhos e sorriso tímido. O Rui apaixonou-se depressa, e eu, carente de companhia, abri-lhe a porta de casa e do coração. Mas depressa percebi que o Rui não era o homem que eu pensava. O luto transformou-o. Tornou-se amargo, ciumento, possessivo. Começou a controlar a Ana, a levantar-lhe a voz, a fechar-lhe as portas do mundo. E eu, cega pelo amor de mãe, fechei os olhos durante demasiado tempo.
— Mãe, não tens o direito! — insistiu ele, agora de pé, a tremer de fúria. — Isto é tudo culpa dela! Ela é que te virou contra mim!
Olhei-o nos olhos, procurando o menino que embalei tantas noites, mas só vi um homem perdido, incapaz de amar sem ferir. Senti uma dor aguda no peito, mas mantive-me firme.
— Rui, chega. Não vou permitir mais isto. A Ana merece respeito. E eu também. Esta casa é minha, e tu vais sair.
A Ana levantou-se, hesitante, como se não acreditasse no que estava a ouvir. O Rui atirou o casaco ao chão, murmurando insultos, e saiu, batendo a porta com tanta força que os quadros quase caíram da parede. Ficámos as duas em silêncio, a ouvir o eco da sua ausência.
Naquela noite, sentei-me à mesa com a Ana. Ela olhava para as mãos, envergonhada, como se a culpa fosse dela. Lembrei-me de tantas noites em que eu própria me sentira assim, pequena, invisível, a pedir desculpa por existir. Peguei-lhe nas mãos e disse:
— Não tens de ter medo. Não estás sozinha.
Ela chorou. Eu também. Pela primeira vez em muitos anos, chorei por mim, pela mulher que deixei morrer quando o António partiu. Chorei pela mãe que fui, pela esposa submissa, pela mulher invisível.
Os dias seguintes foram um turbilhão. O Rui ligava-me, deixava mensagens cheias de raiva e mágoa. A minha irmã, a Teresa, apareceu em casa, indignada.
— Estás maluca? Expulsar o teu próprio filho? O que é que o povo vai dizer?
— O povo não vive aqui, Teresa. Quem vive sou eu. E já chega de viver com medo do que os outros pensam.
Ela abanou a cabeça, como se eu fosse uma criança birrenta. Mas eu sentia-me mais adulta do que nunca. Pela primeira vez, estava a escolher-me a mim.
A Ana começou a ganhar cor. Voltou a estudar, arranjou um part-time numa papelaria. Eu, pela primeira vez em décadas, comprei um vestido novo, pintei o cabelo, fui ao cinema sozinha. Descobri que gostava de caminhar à beira-rio, de ler romances policiais, de ouvir fado alto ao domingo de manhã.
A família afastou-se. No Natal, a mesa ficou mais pequena. A minha mãe recusou-se a vir, dizendo que eu tinha destruído a família. O Rui não me fala há meses. Às vezes, acordo a meio da noite, com o coração apertado, a perguntar-me se fiz bem. Mas depois olho para a Ana, a sorrir, a viver, e lembro-me de todas as noites em que ouvi os gritos abafados atrás da porta do quarto. E sei que não podia continuar a ser cúmplice do silêncio.
Um dia, a Ana chegou a casa com um ramo de flores. Abraçou-me, emocionada, e disse:
— Obrigada, Maria. Salvaste-me a vida.
Chorei de novo. Não por tristeza, mas por alívio. Por finalmente sentir que, apesar de tudo, fiz o que era certo.
Agora, a casa está mais silenciosa, mas cheia de paz. Aprendi a viver com a solidão, a gostar da minha própria companhia. Às vezes, sinto falta do Rui, do filho que criei, mas sei que ele precisa de encontrar o seu próprio caminho, longe da sombra do pai e da mãe.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem assim, apagadas, com medo de escolherem a si próprias? Quantas mães sacrificam a própria felicidade em nome de uma família que já não existe? Será que algum dia vamos aprender a pôr-nos em primeiro lugar, sem culpa?
E vocês, o que fariam no meu lugar? Será que o amor de mãe justifica tudo, mesmo quando nos faz desaparecer?