Lágrimas no Mesmo Travesseiro: Mãe e Filha Abandonadas na Mesma Semana
— Não acredito que ele fez isto comigo, mãe! — gritou Inês, atirando o telemóvel contra a almofada. O som seco do aparelho a bater no tecido ecoou pela sala, misturando-se com o meu próprio soluço, que tentei esconder. Mas não consegui. As lágrimas já me escorriam pelo rosto há horas, desde que li a mensagem do António: “Preciso de tempo. Não sei se ainda te amo.”
Olhei para Inês, os olhos dela vermelhos, a maquilhagem borrada. Tinha vinte e dois anos, mas naquele momento parecia-me tão pequena, tão indefesa. Senti uma dor aguda no peito — não só pela minha perda, mas pela dela também. Como se o universo tivesse decidido brincar connosco, mãe e filha, abandonadas na mesma semana, quase no mesmo dia.
— Ele nem sequer teve coragem de me dizer na cara — continuou ela, a voz embargada. — Mandou uma mensagem! Depois de três anos juntos…
Suspirei fundo. O António também não teve coragem. Vinte anos de casamento e tudo acabou numa frase fria, sem emoção. Olhei para as nossas mãos entrelaçadas no sofá. Era estranho: sempre fui eu a consolar a Inês, a resolver os seus problemas. Agora, éramos duas crianças perdidas num mundo que parecia não querer saber de nós.
O relógio da sala marcava quase meia-noite. Lá fora, Lisboa estava silenciosa, apenas o som distante dos elétricos a passar pela Avenida Almirante Reis. O cheiro do chá de camomila que preparei para acalmar os nervos pairava no ar, mas nenhuma de nós tocou nas chávenas.
— Mãe… achas que há algo de errado connosco? — perguntou Inês de repente, a voz quase um sussurro.
O coração apertou-se-me ainda mais. Quantas vezes fizera eu essa pergunta a mim mesma nos últimos dias? Será que falhei como mulher? Como mãe? Como esposa?
— Não sei, filha… — respondi honestamente. — Mas se houver, pelo menos estamos juntas nisto.
Ela encostou a cabeça ao meu ombro e chorámos em silêncio. Lembrei-me de quando era pequena e tinha medo do escuro; agora era eu quem tinha medo do futuro.
No dia seguinte, acordei com o sol a entrar pelas persianas mal fechadas. A Inês já estava na cozinha, de pijama, a mexer distraidamente o café. Os olhos inchados denunciavam uma noite mal dormida.
— Dormiste alguma coisa? — perguntei.
Ela abanou a cabeça. — E tu?
Sorri tristemente. — Também não.
Sentámo-nos à mesa em silêncio. O pequeno-almoço parecia um ritual vazio. A cada dentada no pão com manteiga sentia um nó na garganta. O telefone tocou — era a minha mãe.
— Então, Ana? Está tudo bem contigo? — perguntou ela, com aquela voz preocupada que só as mães sabem ter.
Hesitei antes de responder. Não queria preocupar ainda mais a minha mãe, mas também não conseguia mentir.
— O António foi-se embora — disse finalmente.
Do outro lado da linha ouvi um suspiro pesado. — Eu bem te disse que ele não era homem para ti…
Revirei os olhos. A minha mãe nunca gostou do António, mas agora não era altura para recriminações.
— Mãe… por favor…
Ela percebeu o tom e mudou de assunto. — E a Inês? Está bem?
Olhei para a minha filha, que fingia não ouvir mas claramente escutava cada palavra.
— Também está a passar um mau bocado…
Desliguei o telefone sentindo-me ainda mais sozinha. A família nunca foi unida; sempre houve discussões por tudo e por nada: heranças, ciúmes antigos, palavras malditas ditas em jantares de Natal que nunca mais foram esquecidas.
Nesse dia tentei ir trabalhar, mas não consegui concentrar-me em nada. Os colegas olhavam-me de lado, sussurrando quando eu passava. Sabiam do meu casamento perfeito — ou assim pensavam eles. Agora era só mais uma mulher divorciada no escritório.
À noite, voltei para casa exausta. Encontrei a Inês sentada no chão do quarto dela, rodeada de fotografias antigas.
— Estava a arrumar as coisas dele — disse ela sem me olhar nos olhos.
Sentei-me ao lado dela e começámos a separar as fotografias: as que valiam a pena guardar e as que deviam ir para o lixo. Cada imagem era uma punhalada: férias em Lagos, aniversários em família, sorrisos falsos que agora pareciam tão distantes.
— Achas que algum dia vamos voltar a ser felizes? — perguntou Inês.
Fiquei sem resposta. Queria dizer-lhe que sim, que tudo passa, mas não conseguia mentir-lhe.
— Não sei… Mas temos uma à outra.
Ela sorriu pela primeira vez em dias e abraçou-me com força.
Os dias seguintes foram uma sucessão de pequenas batalhas: contas para pagar sozinha, vizinhos curiosos a perguntar pelo António, colegas da Inês a mandarem mensagens cheias de pena. A minha irmã ligou-me para dizer que o nosso pai estava doente outra vez e que eu devia ir visitá-lo mais vezes. Senti-me esmagada pelo peso das expectativas dos outros.
Uma noite, depois de um jantar silencioso, ouvi um barulho vindo do quarto da Inês. Fui espreitar e encontrei-a sentada na cama com um caderno aberto à frente.
— O que estás a escrever? — perguntei.
Ela hesitou antes de responder:
— Estou a fazer uma lista das coisas boas que ainda temos…
Sentei-me ao lado dela e li por cima do ombro:
- Temos uma à outra.
- Temos saúde (mais ou menos).
- Temos casa (por enquanto).
- Temos chá de camomila (e vinho tinto escondido no armário).
- Temos esperança (às vezes).
Sorri e acrescentei:
- Temos força para recomeçar.
Ela olhou para mim com os olhos brilhantes e abraçou-me outra vez.
Na semana seguinte, o António apareceu para buscar as últimas coisas dele. Entrou em casa sem olhar para mim, evitou qualquer contacto visual com a Inês. O silêncio era ensurdecedor.
— Espero que fiques bem — disse ele antes de sair.
Não respondi. Fechei a porta atrás dele com uma sensação estranha de alívio misturado com tristeza.
Nessa noite, sentei-me na varanda com um copo de vinho tinto e olhei para Lisboa iluminada lá em baixo. A Inês juntou-se a mim pouco depois.
— Sabes, mãe… acho que vamos ficar bem — disse ela baixinho.
Olhei para ela e percebi que talvez tivesse razão. Talvez esta dor fosse só o começo de algo novo para nós duas.
Agora escrevo estas palavras com o coração ainda apertado mas cheio de esperança. Pergunto-me: quantas mães e filhas estarão neste momento sentadas no mesmo sofá, partilhando lágrimas e silêncios? Será que algum dia aprendemos mesmo a lidar com o abandono ou apenas aprendemos a sobreviver-lhe?