Lágrimas nas Páginas: A História de Sofia e o Sonho dos Livros para o Hospital Pediátrico
— Mãe, achas que as outras crianças também têm medo do escuro? — perguntou-me o Tomás, com a voz cansada, enquanto segurava com força a minha mão. O quarto do Hospital Pediátrico de Coimbra estava mergulhado numa luz baça, e eu sentia o coração apertado, como se cada batida fosse um grito silencioso.
— Acho que sim, meu amor. Mas tu tens os teus livros, não tens? — tentei sorrir, mas a minha voz tremeu.
Tomás olhou para a estante improvisada ao lado da cama, onde se amontoavam livros gastos, alguns com páginas rasgadas, outros com dedicatórias escritas à pressa. — Nem todos têm livros, mãe. Devia haver livros para todos. — E ficou em silêncio, olhando para o teto, como se já estivesse noutro lugar.
Naquela noite, depois de ele adormecer, sentei-me no corredor frio do hospital e chorei baixinho. Oiço ainda hoje o eco dos meus soluços misturados com os sons das máquinas e dos passos apressados dos enfermeiros. O meu marido, Miguel, estava em casa com a nossa filha mais nova, a Matilde. Desde que o Tomás ficou doente, a nossa família dividiu-se entre turnos de hospital e tentativas de manter alguma normalidade para a Matilde.
No dia seguinte, Tomás acordou com um brilho estranho nos olhos. — Mãe, prometes-me uma coisa? — pediu ele, segurando-me o rosto com as mãos pequenas e magras. — Prometes que vais arranjar muitos livros para todas as crianças daqui? Quinze mil! — disse ele, como se fosse um número mágico.
— Prometo, Tomás. Prometo tudo o que quiseres. — E naquele momento soube que aquela promessa me iria salvar da loucura quando ele já não estivesse.
Os dias seguintes foram um turbilhão de exames, tratamentos e esperança intercalada com desespero. Miguel tentava ser forte, mas eu via nos seus olhos o mesmo medo que me consumia. Matilde perguntava todos os dias quando é que o mano voltava para casa. Eu respondia sempre: “Em breve”, mesmo sabendo que talvez esse dia nunca chegasse.
O Tomás foi-se apagando devagarinho. No último dia, antes de adormecer para sempre, sorriu-me e disse: — Vais conseguir, mãe. Eu acredito em ti.
O funeral foi uma névoa de rostos conhecidos e desconhecidos, abraços apertados e palavras vazias. Senti-me vazia também. Mas à noite, quando entrei no quarto dele e vi os livros empilhados junto à cama, lembrei-me da promessa.
Comecei por escrever um post no Facebook: “O Tomás queria 15.000 livros para as crianças do hospital. Quem me ajuda?” Não esperava nada. Mas na manhã seguinte tinha dezenas de mensagens de amigos, conhecidos e até desconhecidos. O telefone não parava de tocar.
Miguel achava que eu devia descansar, mas eu não conseguia parar. Era como se cada livro recolhido fosse uma forma de manter o Tomás vivo. Matilde ajudava-me a separar os livros por idade e género; às vezes chorávamos juntas ao encontrar dedicatórias de outras mães para os seus filhos.
A minha sogra dizia-me: — Sofia, tu precisas é de cuidar da Matilde e do Miguel! Já chega de viveres para uma causa impossível!
Mas eu não conseguia parar. A minha irmã Inês apoiava-me: — Se é isto que te faz levantar da cama todos os dias, então continua! O Tomás merece.
As caixas começaram a empilhar-se na garagem e depois na sala. Os vizinhos começaram a reclamar do movimento constante de carros e pessoas à porta do prédio. Uma vizinha bateu-me à porta furiosa:
— Isto aqui não é uma biblioteca municipal! Já não se pode estacionar nem dormir descansado!
Senti-me humilhada e chorei durante horas. Miguel tentou acalmar-me:
— Sofia, não podes salvar o mundo inteiro…
— Não quero salvar o mundo inteiro! Só quero cumprir a promessa ao nosso filho! — gritei-lhe pela primeira vez desde que tudo começou.
Houve dias em que pensei em desistir. O cansaço era tanto que adormecia sentada no sofá rodeada de caixas de livros. Mas depois recebia mensagens de mães agradecidas porque os filhos tinham recebido um livro novo no hospital e sentia-me capaz de continuar.
A imprensa local soube da história e vieram entrevistar-me. O jornalista perguntou:
— Acha mesmo possível chegar aos 15.000 livros?
— Não sei — respondi — mas tenho de tentar.
A reportagem passou na RTP1 e de repente começaram a chegar livros de todo o país: Porto, Faro, Açores… Até escolas organizaram campanhas solidárias em nome do Tomás.
Mas nem tudo era fácil. Miguel começou a afastar-se cada vez mais. Uma noite chegou tarde a casa e disse:
— Sofia… Eu sinto que já te perdi para esta causa. Não consigo competir com um fantasma.
Fiquei em silêncio. Sabia que ele tinha razão mas não conseguia parar. Era como se parar fosse trair o Tomás.
Matilde começou a ter pesadelos e a fazer xixi na cama outra vez. Levei-a ao psicólogo que me disse:
— A sua filha precisa da mãe presente no agora, não só na memória do irmão.
Senti-me dividida entre dois mundos: o passado com o Tomás e o presente com a Matilde e o Miguel.
No Natal desse ano organizámos uma entrega especial no hospital. Vesti-me de Mãe Natal e levei centenas de livros embrulhados em papel colorido. As crianças abriram os embrulhos com olhos brilhantes; algumas estavam carecas como o Tomás tinha ficado. Senti uma dor aguda mas também uma alegria imensa ao ver aqueles sorrisos.
No final desse dia sentei-me sozinha no carro e chorei como nunca antes tinha chorado. Senti finalmente que estava a cumprir a promessa mas também percebi quanto tinha perdido pelo caminho.
Quando finalmente atingi os 15.000 livros — quase dois anos depois — organizei uma pequena cerimónia no hospital com todas as pessoas que me tinham ajudado. Olhei à volta e vi rostos emocionados: mães, pais, voluntários… Miguel estava lá também, mas distante.
Peguei no microfone e disse:
— O Tomás acreditava que um livro podia mudar um dia mau numa aventura boa. Hoje sei que ele tinha razão.
Depois da cerimónia abracei Miguel e Matilde. Pedi-lhes desculpa por tudo o que tinham sofrido por minha causa.
Hoje continuo a recolher livros, mas aprendi a estar mais presente para quem ainda está comigo. Às vezes pergunto-me se fiz bem ou mal em dedicar-me tanto à promessa do Tomás…
Será possível honrar quem partiu sem perder quem ficou? E vocês… já sentiram este dilema entre passado e presente?