Laços Partidos: Quando a Minha Mãe Escolheu Sempre a Minha Irmã

— Mãe, porquê? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto via a minha mãe entregar à Leonor, minha irmã, o saco com os brinquedos que eu tinha comprado para os meus filhos. O Natal estava à porta e, como sempre, a casa da minha mãe cheirava a canela e nostalgia. Mas naquele instante, tudo o que eu sentia era um nó na garganta.

Ela olhou para mim como se não percebesse a gravidade do que acabara de fazer. — Oh, Mariana, não faças disso um drama. Os teus sobrinhos também merecem — respondeu, sem sequer me encarar.

Senti o sangue ferver. Não era a primeira vez. Desde criança que via Leonor ser a preferida: era ela quem tinha direito ao último pedaço de bolo, ao colo mais demorado, às palavras mais doces. Eu era a filha que aprendia a calar e a engolir em seco. Mas agora eram os meus filhos — o Tomás e a Inês — quem sentia o peso dessa indiferença.

— Mas mãe… eu comprei aqueles presentes para os meus filhos! — insisti, já com lágrimas nos olhos.

Leonor entrou na sala nesse momento, com aquele sorriso seguro de quem nunca precisou lutar por nada. — Mariana, não sejas exagerada. Os miúdos nem vão notar — disse ela, pousando a mão no ombro da minha mãe.

O meu marido, Rui, olhou-me de lado, pedindo silêncio com o olhar. Ele sempre achou que eu devia deixar passar, que família é família e não vale a pena criar conflitos. Mas naquele momento, algo em mim partiu-se.

Lembrei-me de quando tinha oito anos e chorei porque a minha mãe esqueceu-se do meu aniversário. Lembrei-me de quando Leonor reprovou no liceu e a minha mãe passou noites acordada ao lado dela, enquanto eu estudava sozinha para os exames. Lembrei-me de todas as vezes em que tentei ser vista, ouvida, amada da mesma forma.

— Não é justo — murmurei, quase para mim mesma.

A minha mãe suspirou, impaciente. — Mariana, já tens idade para perceber que não se pode agradar a todos. A Leonor está a passar uma fase difícil com o divórcio…

— E eu? Alguma vez perguntaste como estou? Alguma vez te preocupaste com os meus problemas? — rebati, sentindo-me finalmente capaz de dizer tudo aquilo que guardei durante anos.

O silêncio caiu pesado na sala. O Tomás apareceu à porta, com os olhos grandes e curiosos. — Mamã, posso abrir o meu presente?

Olhei para ele e senti uma dor aguda no peito. Como lhe explicaria que o presente dele agora era do primo?

— Não agora, querido — disse-lhe baixinho, tentando sorrir.

Leonor revirou os olhos e saiu da sala. A minha mãe ficou ali parada, como se não entendesse o motivo da minha mágoa.

O jantar foi um desfile de silêncios constrangidos. O Rui tentava puxar conversa sobre futebol com o meu pai, mas ninguém parecia interessado. A Inês choramingava porque queria brincar com o boneco novo — aquele que eu tinha escolhido com tanto carinho para ela.

Depois do jantar, fui até à varanda para respirar fundo. Senti o frio da noite lisboeta na pele e deixei as lágrimas correrem livremente. Ouvi passos atrás de mim; era o meu pai.

— Mariana… — começou ele, hesitante. — Sabes como é a tua mãe… Ela sempre foi assim com a Leonor. Não vale a pena sofreres por isso.

— Mas dói, pai. Dói ver que nem os meus filhos escapam a esta diferença.

Ele pousou uma mão pesada no meu ombro. — Eu sei. Mas tu és forte. Sempre foste.

Forte… Era essa a palavra que todos usavam para justificar o injustificável. Forte porque aprendi a não chorar alto. Forte porque nunca precisei de colo. Forte porque ninguém me deu escolha.

Naquela noite, decidi que não voltaria a calar-me. No dia seguinte liguei à minha mãe.

— Mãe, precisamos de falar.

Ela suspirou do outro lado da linha. — Outra vez esse assunto?

— Sim, outra vez. Porque não é só sobre mim. É sobre os teus netos também. Eles sentem quando são postos de lado.

— Mariana… — tentou ela interromper.

— Não! Ouves-me agora ou nunca mais falo disto contigo! — gritei, surpreendendo-me com a minha própria coragem.

Houve um silêncio longo antes dela responder:

— Eu não sabia que te magoava tanto…

— Pois não sabias porque nunca quiseste saber! Sempre foi mais fácil fingir que estava tudo bem do que olhar para mim e ver uma filha magoada!

Ela chorou do outro lado da linha. Pela primeira vez ouvi fragilidade na sua voz:

— Eu só queria ajudar a Leonor… Ela sempre foi tão frágil…

— E eu? Nunca te ocorreu que eu também precisava de ti?

A conversa terminou sem grandes conclusões. Mas pela primeira vez senti que as minhas palavras tinham ecoado nalgum lugar dentro dela.

Nos dias seguintes, tentei manter distância. O Rui apoiou-me em silêncio; percebi que ele também estava cansado daquela dinâmica familiar tóxica.

A Leonor mandou-me uma mensagem curta: “Desculpa se te magoei.” Não respondi. Não sabia se era sincera ou apenas mais uma tentativa de manter as aparências.

O Tomás perguntou-me várias vezes pelo presente perdido. A Inês chorou quando viu o primo brincar com o boneco dela. Expliquei-lhes que às vezes os adultos cometem erros e que nem sempre as coisas são justas.

No fundo, sentia-me culpada por não conseguir protegê-los desta dor ancestral.

Passaram-se semanas até voltar à casa dos meus pais. Quando entrei, reparei num desenho da Inês colado no frigorífico: “Para a avó”. Senti um aperto no peito ao perceber que ainda assim ela queria agradar à avó.

A minha mãe veio ter comigo na cozinha:

— Mariana… tenho pensado muito no que disseste. Sei que falhei contigo muitas vezes…

Olhei-a nos olhos e vi arrependimento sincero pela primeira vez em anos.

— Só quero que trates os meus filhos como tratas os da Leonor — pedi-lhe baixinho.

Ela assentiu e abraçou-me com força. Chorei no seu ombro como há muito não fazia.

Não sei se alguma vez conseguiremos curar todas as feridas do passado. Mas naquele abraço percebi que talvez fosse possível começar de novo.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas nestes ciclos de favoritismo e silêncio? Quantas crianças crescem sentindo-se invisíveis dentro das suas próprias casas? Será possível quebrar este ciclo antes que seja tarde demais?