Laços Invisíveis: Entre a Esperança e a Desilusão

— Mãe, não podes continuar a ligar-me todos os dias! — gritou Isabella do outro lado da linha, a voz embargada entre o cansaço e a irritação. Fiquei em silêncio, sentindo o peso das palavras dela como se fossem pedras a cair-me no peito. O relógio da cozinha marcava 19h12, e o cheiro do arroz de pato que preparava para o jantar já não me parecia reconfortante.

Recordo-me de quando Isabella era pequena, de como me agarrava à saia quando tinha medo dos trovões. Agora, parecia que era eu quem precisava de um colo, de uma palavra doce, mas tudo o que recebia era distância. Isaac, o meu filho mais velho, também já não vinha cá a casa há meses. Diz que o trabalho no escritório de advogados em Lisboa não lhe deixa tempo para nada. “Mãe, a vida é diferente agora”, repete sempre que tento puxar conversa.

Sento-me à mesa da cozinha, olho para as fotografias antigas penduradas na parede: Isaac com o diploma na mão, Isabella vestida de noiva, eu e o António — meu falecido marido — sorridentes num piquenique em Sintra. Sinto saudades de tudo aquilo que já não volta.

O telefone vibra outra vez. É uma mensagem curta da Isabella: “Desculpa, mãe. Estou cansada. Falamos depois.” Leio e releio aquelas palavras, tentando encontrar nelas algum vestígio da filha carinhosa que criei. Pergunto-me onde foi que errei. Terá sido por lhes dar tudo? Por nunca lhes dizer não? Ou talvez por esperar demais deles?

Naquela noite, sento-me sozinha na sala, com a televisão ligada só para ouvir vozes humanas. Oiço um programa sobre famílias portuguesas que se reencontram depois de anos separadas. Sinto um nó na garganta. Pego no telefone e escrevo uma mensagem ao Isaac: “Filho, tenho saudades tuas. Quando vens jantar?” Ele responde horas depois: “Logo vejo, mãe. Esta semana é impossível.”

No dia seguinte, vou ao café da Dona Emília, onde costumo encontrar outras mães do bairro. A conversa gira sempre à volta dos filhos e netos. A Maria do Carmo fala com orgulho do neto que ganhou um prémio na escola; a Teresa mostra fotos do batizado da neta. Sorrio e finjo interesse, mas por dentro sinto inveja daquela felicidade simples.

— Então, e os teus filhos? — pergunta a Dona Emília, limpando as mãos ao avental.

— Estão bem… Trabalham muito — respondo, tentando disfarçar a tristeza.

À noite, ligo à Isabella outra vez. Ela atende ao fim de vários toques.

— O que foi agora, mãe?

— Só queria ouvir a tua voz… Saber se estás bem.

— Estou bem, mãe. Mas tenho muita coisa para fazer. Não posso estar sempre ao telefone.

— Desculpa… Não quero incomodar.

Ela suspira do outro lado.

— Mãe, tens de perceber que eu tenho a minha vida agora. Não posso ser sempre eu a cuidar de ti.

Fico calada. Sinto-me pequena, desnecessária. Lembro-me das noites em que fiquei acordada com ela quando tinha febre, das vezes em que lhe fiz chá de limão para acalmar a garganta inflamada. Agora sou eu quem precisava de um chá quente para acalmar o coração.

Os dias passam lentos. Oiço os vizinhos a rir no pátio, vejo famílias inteiras a passear no jardim ao domingo. Tento ocupar-me: faço tricô, leio romances antigos, vou à missa ao sábado à tarde. Mas nada preenche o vazio que sinto.

Um dia recebo uma carta do Isaac. Não é comum ele escrever-me; normalmente manda mensagens rápidas ou ligações apressadas. Abro o envelope com as mãos trémulas:

“Mãe,

Desculpa não ter estado mais presente. Sei que sentes a minha falta e da Isabella. A vida tem sido uma correria e às vezes esqueço-me do que é importante. Prometo tentar estar mais contigo.

Com carinho,
Isaac”

Choro ao ler aquelas palavras. Talvez ainda haja esperança.

No domingo seguinte preparo um almoço especial: bacalhau à Brás, o prato favorito do Isaac desde pequeno. Ponho a mesa com a toalha bordada pela minha mãe e coloco flores frescas no centro. Às 13h em ponto ouço a campainha. O meu coração salta no peito.

É o Isaac, sozinho.

— Olá, mãe — diz ele, abraçando-me com força.

— Que saudades, filho!

Sentamo-nos à mesa e conversamos sobre tudo e nada: o trabalho dele, as notícias do bairro, as saudades do pai. Sinto-me viva outra vez.

— E a tua irmã? — pergunto.

Ele baixa os olhos.

— A Isabella está… diferente, mãe. Ela sente-se pressionada por ti. Diz que tens muitas expectativas.

Fico magoada com aquelas palavras.

— Só quero estar perto dela… É pedir muito?

Isaac segura-me as mãos.

— Às vezes é preciso dar espaço para os outros virem até nós.

Depois do almoço ele despede-se com um beijo na testa e promete voltar em breve. Fico sozinha outra vez, mas com o coração um pouco mais leve.

Passam-se semanas sem notícias da Isabella. No aniversário dela compro um bolo de chocolate e espero por uma chamada que nunca chega. Ao fim do dia envio-lhe uma mensagem: “Parabéns, filha! Amo-te muito.” Ela responde apenas: “Obrigada.” Sinto-me invisível na vida dela.

Uma tarde chuvosa recebo uma visita inesperada: é a minha vizinha Ana Paula, aflita porque o filho adolescente fugiu de casa depois de uma discussão violenta.

— Não sei o que fazer! — chora ela no meu ombro.

Abraço-a e digo-lhe:

— Os filhos são como pássaros… criamo-los para voar, mas nunca estamos preparados para os ver partir.

Enquanto tento consolar Ana Paula percebo que todas as mães carregam dores parecidas — umas mais visíveis do que outras.

No Natal decido fazer um último esforço para reunir a família. Mando convites aos meus filhos para virem jantar cá a casa na véspera de Natal. Passo dias a preparar tudo: polvo à lagareiro, rabanadas, sonhos polvilhados com açúcar e canela.

Na noite de Natal sento-me sozinha à mesa posta para quatro pessoas. O relógio marca 21h30 quando finalmente ouço passos na escada. É o Isaac outra vez — desta vez traz consigo uma garrafa de vinho e um sorriso triste.

— A Isabella não vem? — pergunto com esperança.

Ele abana a cabeça.

— Disse que preferia passar o Natal com os amigos este ano…

O silêncio instala-se entre nós como um manto pesado. Brindamos à saúde dos ausentes e partilhamos memórias antigas para preencher o vazio da ausência dela.

Quando Isaac vai embora fico sentada à mesa até tarde, olhando para os lugares vazios e perguntando-me se algum dia voltaremos a ser uma família unida como antes.

Agora escrevo estas palavras na esperança de encontrar consolo ou compreensão em quem lê esta história. Será que exigi demais dos meus filhos? Ou será simplesmente assim que a vida é — feita de laços invisíveis que se esticam até quase romperem?

E vocês? Também sentem saudades de alguém que já está longe mesmo estando perto? Como lidam com as expectativas e as desilusões dentro da vossa própria família?