“Já não sou mais a vossa ama gratuita” – Confissões de uma avó portuguesa

— Maria, podes vir cá amanhã buscar o Tomás à escola? — perguntou a minha nora, Joana, com aquela voz apressada, já sem espaço para um não.

Olhei para o telefone, sentindo o peso da rotina. Era sempre assim: uma chamada rápida, um pedido, um favor que já não era favor, mas obrigação. O meu coração apertou-se. Tinha acabado de chegar do supermercado, as pernas doíam-me e ainda nem tinha tido tempo de almoçar. Mas, como sempre, engoli o cansaço.

— Sim, Joana, posso ir — respondi, tentando soar animada.

Desliguei e fiquei a olhar para a parede da cozinha, onde as fotografias dos meus netos sorriam para mim. Lembrei-me de quando era eu a mãe apressada, a correr entre o trabalho e os filhos. Mas agora, aos 68 anos, sentia-me presa num ciclo sem fim: acordar cedo, preparar o pequeno-almoço para o António — o meu marido —, limpar a casa, ir buscar os netos à escola, dar-lhes o lanche, ajudar nos trabalhos de casa, ouvir birras e discussões. E depois, quando finalmente todos iam embora, ficava eu e o silêncio.

O António já não era o mesmo. Depois do enfarte, tornou-se mais calado, mais dependente. Os nossos serões resumiam-se a ver televisão em silêncio ou a discutir pequenas coisas: o sal na sopa, a janela aberta. Senti falta de conversa, de carinho. Senti falta de mim.

Naquela noite, enquanto lavava a loiça, ouvi o António resmungar:

— Vais outra vez amanhã? Eles não têm vergonha nenhuma…

— São os nossos netos — respondi, mas a minha voz soou vazia.

Ele bufou:

— Pois são. Mas tu não és criada deles.

Fiquei a pensar nas palavras dele. Não era criada deles… Mas então porque é que me sentia assim? Porque é que ninguém perguntava como estava eu? Porque é que ninguém reparava se estava cansada ou triste?

No dia seguinte, fui buscar o Tomás e a Leonor à escola. Eles correram para mim com abraços e beijos. O coração derreteu-se-me — por eles faria tudo. Mas quando chegámos a casa dos meus filhos, Joana nem olhou para mim.

— Obrigada, Maria. Amanhã podes vir outra vez? Tenho reunião até tarde.

Respirei fundo. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Joana… — comecei, mas ela já estava ao telefone.

Fui para casa com um nó na garganta. À noite, sentei-me na cama e chorei baixinho para não acordar o António. Chorei por mim, pela Maria que já não sabia quem era sem ser avó ou mãe ou esposa.

No domingo seguinte, durante o almoço de família, tentei falar:

— Gostava de conversar convosco sobre uma coisa…

O meu filho Pedro interrompeu-me:

— Mãe, depois falamos disso. Agora podes ajudar a Leonor com o tablet?

Senti-me invisível. Levantei-me da mesa e fui para a varanda. Lá fora chovia miudinho. Senti as lágrimas misturarem-se com a chuva no vidro.

Naquela noite tomei uma decisão. No dia seguinte liguei ao Pedro:

— Filho, preciso de falar contigo e com a Joana. É importante.

Encontrámo-nos num café perto da casa deles. As mãos tremiam-me enquanto mexia no café.

— Eu adoro os meus netos — comecei — mas não posso continuar assim. Estou cansada. Preciso de tempo para mim…

A Joana olhou para mim como se eu tivesse dito uma heresia.

— Mas Maria… nós contamos contigo! Não temos outra solução!

O Pedro ficou calado, desconfortável.

— Mãe… tu sempre disseste que gostavas de estar com eles…

Senti uma mistura de culpa e raiva.

— Gosto! Mas também sou pessoa! Também preciso de descansar! Já não sou nova…

A conversa terminou num silêncio pesado. Saí do café com o coração apertado mas também aliviado.

Nos dias seguintes ninguém me ligou. O telefone ficou mudo. O António tentava animar-me:

— Fizeste bem. Eles têm de perceber que também tens limites.

Mas eu sentia falta dos meus netos. Sentia falta do barulho deles em casa, dos desenhos espalhados pela mesa da sala.

Uma semana depois recebi uma mensagem do Pedro: “Mãe, podemos conversar?”

Encontrámo-nos no jardim perto da minha casa. Ele parecia mais velho, cansado.

— Desculpa — disse ele baixinho — Nunca pensei que estivesses tão cansada… Achámos que gostavas mesmo de ajudar…

Chorei nos braços dele como há muitos anos não fazia.

A Joana demorou mais tempo a aceitar. Durante semanas evitou falar comigo. Só quando a Leonor fez anos é que me ligou:

— Maria… desculpa se fui injusta contigo. Não percebi que estavas a sofrer.

A partir daí as coisas mudaram devagarinho. Passei a ver os meus netos menos vezes mas com mais alegria. Comecei a ir ao centro de dia do bairro, fiz novas amigas, voltei a ler livros que tinha deixado esquecidos na estante.

Às vezes ainda sinto culpa por ter dito “basta”. Mas aprendi que cuidar de mim não é egoísmo — é necessidade.

Agora pergunto-me: quantas Marias há por aí presas entre o amor à família e o medo de dizer não? Será que alguma vez nos lembramos que as avós também são mulheres com sonhos e cansaços?